domingo, 17 de dezembro de 2017

Uma só entre todas as mulheres

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga - Jornal do Brasil
Naquele tempo, o anjo do Senhor dirigiu-se a uma jovem mulher, noiva do carpinteiro José. E o nome dela era Maria. O anjo lhe revela uma notícia impossível: uma gravidez inesperada e não planejada. Dialogando com o mensageiro divino, ela assume o incompreensível mistério que nela se realiza. E o assume com todas as suas consequências.

Em uma sociedade patriarcal como a de seu tempo e seu lugar, uma gravidez acontecida fora do momento certo e da instituição abrigada por lei era algo perigosíssimo. O compromisso de noivado equivalia ao matrimônio e uma infidelidade dentro deste contexto podia resultar em severa punição, até mesmo o apedrejamento reservado às adúlteras.

Não é difícil imaginar a dificuldade de todo o processo da concepção de Jesus que Maria enfrentaria sem o concurso de José. Igualmente é fácil imaginar o que aconteceria a ela em uma cultura patriarcal, segundo o relato de Mateus, se José não houvesse decidido tomá-la por esposa crendo no que Deus lhe dizia e passando além da letra da lei.

Trata-se de algo profundamente revolucionário a hipótese de que o Espírito de Deus repouse em plenitude sobre uma mulher que apresenta uma gravidez de origem ignorada ou suspeita. Mesmo se o que acontecia na corporeidade de Maria fosse fruto de uma violência – da qual eram vítimas muitas mulheres daquele tempo, jovens camponesas que sofriam o ataque dos soldados romanos de passagem - isso a poria em situação de extrema vulnerabilidade, ameaçada pelo desprezo da sociedade em que vivia.

Por isso, é ainda mais extraordinário que ela, com a força que lhe foi dada por Deus, tenha sido capaz de converter em bem uma situação de insegurança e incalculável risco. Parece-nos que aí está em movimento e acontecendo de fato uma revelação que ilumina problemas tão contemporâneos como a violência contra a mulher, desde a pornografia até as agressões físicas, as violações e as escravidões sexuais.

A jovem aceita o que lhe é anunciado como graça e bênção. O menino que nascer será Filho do Altíssimo. No centro do plano de Deus está uma mulher jovem e grávida. Uma jovem mãe.

O Advento que vivemos e celebramos é um tempo de espera, dessa espera que acontece no ventre fecundo de Maria. Espera lenta e gozosa, como a da gravidez de Maria e de toda gravidez. Em seu ventre livre e disponível cresce a semente da vida, o broto do Povo de Deus, o Salvador a quem dará o nome de Jesus, que significa Javé salva.

Maria é única pela enorme importância que tem o mistério que nela acontece no imaginário religioso cristão. Mistério que no fundo está presente em toda mulher habitada por outra vida, gerando um novo ser, um novo membro do gênero humano. No caso de Maria, este que é gerado tem um destino que supera a mãe, assim como a todos os outros seres humanos. E que por isso torna sua pessoa e vocação matriz de outras relações muito ricas e complexas: a de Deus com a humanidade, a do homem com a mulher, a do filho com a mãe.

Com ela e a partir dela, o Cristianismo e por causa dele o Ocidente encontrou um discurso sobre a maternidade que ultimamente parece correr o risco de perder. Um novo olhar sobre o mistério de Maria exorciza esse risco, pois reabilita a corporeidade feminina – coisa que a arte, com relação a Maria, já andou fazendo – apresentando positivamente a erótica feminina, impossível sem essa glorificação do corpo da mãe judia do homem Jesus.

O culto a Maria exorciza em parte a culpabilidade imposta à mulher desde Eva e suas filhas. E torna possível uma ética para a modernidade, que sem o concurso das mulheres, não poderá ser construída. Trata-se de uma ética que não se confunde com a moral, que não evita a iniludível problemática da lei; ao contrário, lhe dá corpo, linguagem e fruição.

Em Jesus, o próprio Deus assumiu a carne humana, carne de homem e de mulher. O Filho de Deus é igualmente o filho de Maria de Nazaré...nascido de mulher. Este que vigilantes esperamos e cujo nascimento celebraremos no Natal não é diferente daquele que nasceu da carne de Maria. Desta mulher galileia, Jesus de Nazaré recebeu a carne reconhecida e aclamada pela Igreja e pela fé cristã como carne de Deus.

Nascido de Maria, Jesus de Nazaré andou pelos caminhos de terra da humanidade. Tendo nascido do útero desta jovem mulher nazarena, nutrido e alimentado por sua carne e seu leite, cresceu em graça e sabedoria, e surpreendeu seus contemporâneos, os quais, vendo os maravilhosos e poderosos sinais que realizava disseram um ao outro: “É este o filho do carpinteiro? Não se chama sua mãe Maria e não está no meio de nós? “

No centro do mistério da Encarnação, o Novo Testamento situa o homem e a mulher, Jesus e Maria, Deus que assume a carne humana dentro e através da carne de uma mulher, “nascido de mulher”. Deus não se fez homem, não se identificou apenas com uma metade da humanidade. Ele se fez carne, carne de homem e de mulher, a fim de que o caminho para o Pai possa passar necessariamente através da condição humana total, masculina e feminina, porque Deus criou a criatura humana macho e fêmea.

A afirmação “Deus se fez carne” deve ser completada por outra de análogo valor: “Deus nasceu de uma mulher”. Ambas significam um extraordinário salto qualitativo na consciência histórica da relação da humanidade com Deus. A descoberta de que não há mais necessidade de buscar a Deus no estrito ritualismo ou na letra da Lei. Deus pode e quer ser descoberto no nível mais frágil dos homens e mulheres. Nos pobres e nas vítimas da injustiça e da violência, nas mulheres grávidas e nas crianças pequenas está a definitiva interpelação para a humanidade. O mistério da Encarnação de Jesus na carne de Maria ensina que o ser humano não está dividido entre um corpo de pecado e defeito e um espírito de grandeza e transcendência. O mistério da Encarnação está enraizado exatamente na fragilidade, na pobreza, e é nos limites da carne humana – carne de homem e de mulher – que a inefável e infinita grandeza do Espírito pode ser contemplada e adorada.

Preparai os caminhos

Por Cardeal Orani Tempesta
Uma das práticas do Advento é a celebração Penitencial. Precisamos nos preparar abaixando as colinas, enchendo os vales e endireitando os caminhos de nossas vidas. Para isso, além de tantas outras práticas do Advento, organizam-se mutirões de confissões quando vários sacerdotes de uma mesma região atendem os penitentes que assim se preparam para o Natal.

Jesus, que é Deus bendito, tem o poder perdoar os pecados: “O Filho do homem tem o poder de perdoar os pecados sobre a terra” (Mc 2,10). Este poder, ele concedeu a Igreja, para que o exerça em seu nome: “Tudo isso vem de Deus, que nos reconciliou consigo por Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação” (2Cor 5,18); “O que desligares na terra será ligado no céu, e o que desligares na terra será desligado nos céus” (Mt 16,19); “Em verdade vos digo: tudo quanto ligardes na terra será ligado no céu e tudo quanto desligardes na terra será desligado no céu” (Mt 18,18). As passagens são claras: o Cristo, único que pode perdoar os pecados, deu à sua Igreja o poder de perdoar os pecados em seu nome! Ligar e desligar significa, na linguagem rabínica do tempo de Jesus, excluir da comunhão com Deus e com a comunidade (= ligar) e acolher novamente na comunhão com Deus e a Igreja (= desligar). Vale à pena, ainda, citar Jo 20,22s: “Recebei o Espírito Santo. Aqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; aqueles aos quais retiverdes, ser-lhes-ão retidos”.

No caso do Sacramento da Penitência (Confissão), é importante recordar: “E eu te digo: Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei a minha Igreja e as portas do inferno nunca levarão vantagem sobre ela. Eu te darei as chaves do reino dos céus, e tudo que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo que desligares na terra será desligado nos céus” (Mt 16,18s); “Após essas palavras, soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados serão perdoados. A quem não perdoardes os pecados não serão perdoados” (Jo 20,22s). Assim, Cristo fez dos Apóstolos (e de seus sucessores) participantes do seu próprio poder de perdoar os pecados, reconciliando os pecadores com Ele mesmo e com a sua Igreja!

Somos chamados à conversão, a uma contínua mudança de vida pela penitência. A penitência são as atitudes e gestos que revelam a mudança interior, a conversão do coração. O catecismo da Igreja explica que “a conversão interior impele à expressão exterior com gestos e sinais visíveis, gestos e sinais de penitência” (n. 1430). E o Catecismo completa, de modo muito preciso: “ A penitência interior é uma radical reorientação de toda a vida, um retorno, uma conversão a Deus com todo o coração, uma ruptura com o pecado, uma aversão ao mal, juntamente com a reprovação das más ações que cometemos” (n. 1421).

Sabemos que o Tempo do Advento, é tempo de preparação para o encontro com Cristo que vem, veio e virá, em especial para o Natal do Senhor. Quantas pessoas neste período começam em suas casas fazer uma reforma, pintura e faxina. Assim, também espiritualmente falando, somos convidados neste tempo do Advento a através do Sacramento da Penitência a nos aproximar da reconciliação com Deus e com o nosso próximo. Confessar-se neste período é uma prática importante, pois, é necessário limpar o nosso coração dos pecados e mágoas. É um momento de olharmos para dentro da casa do nosso coração e fazer a faxina geral. O Tempo do Advento é tempo de parar e refletir: o que fiz este ano? O que posso melhorar para o próximo ano? E sem dúvida, é momento de agradecer a Deus.

Advento, tempo de Conversão como clamou João Batista ao anunciar o Messias que estava entre eles. Não existe possibilidade de esperança e de alegria sem retornar ao Senhor de todo coração, na expectativa da sua volta. O cristão, convertido a Deus, é filho da luz e, por isso, permanecerá acordado e resistirá às trevas, símbolo do mal, pois do contrário corre o risco de ser surpreendido pela parusia.

Esse comportamento de vigilante espera na alegria e na esperança exige sobriedade, isto é, renúncia aos excessos e a tudo aquilo que possa desviar-nos da espera do Senhor. A pregação do Batista, que ressoa no texto do evangelho do segundo domingo do Advento, é apelo para a conversão, a fim de preparar os caminhos do Senhor. O espírito de conversão, próprio do Advento, possui tonalidades diferentes daquelas relembradas na Quaresma. A substância é essencialmente a mesma, mas, enquanto a Quaresma é marcada pela austeridade da reparação do pecado, o Advento é marcado pela alegria da vinda do Senhor.

sábado, 16 de dezembro de 2017

Novena de Natal

Por Cardeal João Orani Tempesta
O tempo do advento é constituído de quatro domingos que antecedem o Natal do Senhor. É, portanto, tempo de piedosa espera. Ora, esperar uma pessoa querida requer alegre e cuidadosa preparação. Esta preparação para o natal tem dupla característica: tempo de preparação para as solenidades do Natal, nas quais se recorda a primeira vinda do Filho de Deus ao meio dos homens; e simultaneamente, tempo em que, com esta recordação, a atenção se dirige para a expectativa da segunda vinda de Cristo no fim dos tempos. Celebrando cada ano este mistério, a Igreja nos exorta a renovar continuamente a lembrança de tão grande amor de Deus para conosco. Eis aqui algumas atitudes que nos ajudarão a preparar uma celebração digna e frutuosa do Natal. A primeira atitude é de Oração. A oração abre-nos, por Cristo, em Cristo e com o Espírito Santo, à contemplação do rosto do Pai, colocando-nos em comunhão e sintonia com a Trindade, fonte de santidade, de alegria e da verdadeira paz. A liturgia especial da semana de preparação próxima do Natal nos traz uma bela espiritualidade para este tempo tão especial.

Tradição religiosa que costuma ser realizada na preparação de momentos importantes, a novena faz parte do patrimônio da religiosidade popular. Diante do Advento, vivido pela Igreja antes da celebração do Natal, não poderia ser diferente. A montagem do presépio, a intensificação do espírito de caridade e a novena de Natal fazem parte da vida dos cristãos.

A Novena do Natal em família ou nos grupos como pequena comunidade, círculo bíblico ou grupo de reflexão é uma expressão belíssima de oração comunitária. Participe de algum grupo da sua comunidade, vizinhança, condomínio ou apartamento. O espírito do natal é a aproximação entre as pessoas que cria a cultura do encontro. Só com a cultura do encontro superamos o individualismo e o isolamento que empobrecem a vida.

Iniciamos por estes dias a novena de natal. Mas, antes disso, podemos nos perguntar sobre o significado verdadeiro do natal. Esta bonita celebração que nós celebramos tem o sentido verdadeiro em Jesus Cristo. O sentido do natal é celebrar a encarnação de Jesus Cristo, ou seja, Deus se fez homem e habitou entre nós. Ao assumir a nossa natureza, comunica-nos a sua condição divina, Unigênito do Pai, nascido do Pai antes de todos os séculos (tempos). Luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Por Ele todas as coisas foram feitas. Por nós homens e para a nossa salvação desceu do céu e se encarnou, pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria e se fez Homem. Assim professamos a nossa fé cristã, o Credo.

Jesus Cristo, o eterno Verbo do Pai, nasce para nós. Ele que desde o princípio está com o Pai, pelo qual tudo foi criado e nada foi criado sem Ele, no qual tudo subsiste e toma consistência. Ele se encarna no mundo que por Ele mesmo foi criado, para dar sentido à vida, ao tempo. Sua eternidade dá sentido ao tempo. A cada ano o Natal revigora a nossa fé. A fé revigora os nossos laços espirituais entre os familiares, entre vizinhos, entre amigos, entre todos os povos da terra. Porque, naquele que nasceu por nós, sua Luz de vida e Verdade nos foi dada. Hoje, doado a nós pelo Pai, o Espírito que n’Ele repousa renova a face da terra, em conformidade com a sua Palavra: “Eis que faço novas todas as cosias” (Cf. Ap. 21,5).

Uma das formas de se preparar espiritualmente é a novena de natal. A novena recorda os dias próximos que a Virgem santíssima estava prestes a dar à luz ao Menino-Deus. Para prepara melhor para o natal do Senhor temos várias versões de textos, inclusive um próprio de nossa arquidiocese que focaliza o tema do cristão leigo dentro do ano do laicato. A CNBB apresenta as reflexões neste ano baseadas na Iniciação Cristã: 1° Dia da novena: Anúncio: A alegre notícia; 2° Dia da novena: A iniciação: mergulho no mistério, 3° Dia da novena: Iniciação à vida cristã: gestação do cristão, 4° Dia da novena: João Batista, figura do Introdutor, 5° Dia da novena: Maria, modelo de catequista, 6° Dia da novena: Catecumenato e mudança de vida: itinerário de José, 7° Dia da novena: A comunidade, casa da iniciação à vida cristã, 8° Dia da novena: A família, berço da iniciação, 9° Dia da novena: Natal de Jesus, nascimento do cristão.

Ao celebramos esta novena de natal, nos deixamos ser conduzidos pelo Senhor, pois, ser iniciados na vida de Cristo, no modo de viver de Cristo é conhecer e seguir seus passos nos faz sermos verdadeiros discípulos e missionários.

domingo, 3 de dezembro de 2017

No Ver-o-Peso, o pecado da gula é para excomungar

Por Heitor e Silvia Reali - No Estadão
Anime-se para uma festa! Vem comigo a Belém, Pará, onde a festança nasce junto com o dia, quando o sol e os barcos tocam a névoa sobre as águas ambarinas do rio Guajará. Rio que encosta no mercado Ver-o-Peso, coração e palco desta festa. Vamos agorinha mesmo ver a chegada dos coloridos barcos com porões grávidos de frutas e peixes. Assim que atracam no ancoradouro, começa o bailado vaivém dos carregadores transportando cestos de frutas, peixes, açaí, e braçadas de folhas de maniva (mandioca). Depois me conta se já viu coisa igual no mundo. Impossível!Tão importante para os paraenses quanto a Torre Eiffel para os franceses, o Mercado Ver-o-Peso, tem estrutura de ferro trazida da Inglaterra e foi inaugurado em 1901. Sua influência é tão grande na vida do belenense que só fecha num único dia ao ano – o consagrado a Virgem de Nazaré.

Só lá para sentir os exóticos aromas das frutas regionais que incensam o ar: umari, fruto que só cresce no Pará; pupunha, encontrada nas cores vermelho, verde e laranja; piquiá, fruto carnudo de polpa cor de gema cozida de sabor e aroma inconfundível; ingá, bacuri, cutite cutitiribá de nome tão sonoro que faz a gente até querer dançar; e o rei dos sabores e aromas – o cupuaçu. Embora não seja uma fruta, são as amêndoas da semente, não poderia de reverenciar aqui a castanha-do-Pará.

Nesta hora chega o zombeteiro feirante que me oferece uma folhinha com o botão de uma flor singela para experimentar – o jambu. Pronto, um sobressalto, pois a verdura e sua flor produzem um leve tremorzinho e dormência na boca. Passado o susto, deixa um sabor único. Ah, pensa que é só! Tem produto de tal fartura e importância que ganha ala inteirinha só para si, como as coloridas pimentas, dentre elas a olho-de-peixe, e a pimenta-de-cheiro. Outro com espaço exclusivo são os peixes de rio e mar: tambaqui, tucunaré, pirarucu, matrinchã, xaréu, aruanã, gó, dourada, e filhote de 60 quilos (imagine o tamanho do pai). A maioria tem nomes indígenas e alguns dos peixes, como o cascudo tem jeitão jurássico. 
 
E ainda tem a ala das farinhas de mandioca, e a dedicada aos utensílios para o preparo dos pratos únicos.Outra com ala própria é a das “bruxas de Belém”, como carinhosamente são chamadas as vendedoras de todo tipo de soluções para as mazelas do corpo e da alma. São 1.600 tipos de ervas, como a amarapuama, a priprioca e o cuxui. Essências do pau-rosa, este usado na composição do Chanel 5; patchuli, considerado o cheiro do Pará, sândalo, além de ingredientes especiais mandingas, são vendidos em garrafas, frasquinhos coloridos ou na forma de unguentos.
 
Todo esse banquete para os sentidos tem início com a Feira do Açaí, fruta tão importante para o paraense que é homenageada com uma feira só para ela e que acontece todas as madrugadas, ao lado do mercado Ver-o-Peso. A frutinha é o “oro negro”, como a definem os ribeirinhos, e a de melhor qualidade é nativa da Ilha do Marajó. Extraído de uma palmeira que cresce em terrenos alagadiços, pequenino e ácido, de cor arroxeada, quase negro, é conhecido também como o maná da Amazônia. De alto valor energético e rico em fibras, ele aparece, no norte do país, em receitas tanto doces quanto salgadas, como bolo, pudim, ou mingau. Nas refeições acompanha peixe frito ou camarão. Na sobremesa vira pudim, sorvete ou creme. 
 
Agora com apetite desperto, vou saborear o xodó paraense, o tacacá. Feito de goma de tapioca, tucupi, que é o caldo extraído da mandioca brava, camarões, pimenta e jambu. Tradicionalmente tomado em cuias, não acompanha nem garfo, nem colher, e fica a dúvida, se é bebida ou comida, mas a cuia é tão quente que não dá para segurar.

Toda essa pluralidade gera uma gastronomia singular. Nenhuma é tão brasileira, tão fiel às origens, e tão tradicional, daí registrada como Patrimônio da UNESCO como gastronomia criativa.

Coragem e decência

Por Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República
Quando eu era criança havia um ditado que insistia em que “ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”. Eram tempos do Jeca Tatu, figura mítica que habitava os campos brasileiros. Ainda devem existir jecas-tatus por este mundão afora, mas sua imagem esmaeceu no imaginário brasileiro. Havia o drama dos pés descalços; mesmo no Rio, onde passei a meninice e não havia muita gente descalça, muitos usavam tamancos. O bicho-do-pé era uma preocupação dos que iam às fazendas. Depois veio a leva das “havaianas” e se tornou raro ver gente sem sapato. As saúvas devem continuar existindo...

Mais recentemente, antecedendo a Constituição de 1988 e mesmo depois dela, durante meu governo, as “marchas dos sem-terra” tornaram realidade política a carência de reformas no campo. Bem ou mal fomos distribuindo terras. Somando o que foi feito em meu governo ao que fez o primeiro governo petista, houve, sem alarde, uma “reforma agrária”, se considerarmos a redistribuição de terras. Ao lado disso, houve uma revolução agrícola, com ciência e tecnologia da Embrapa por trás, financiamento mais adequado e audácia empresarial.

Não havia SUS até que os governos pós-Constituição de 1988 o puseram em marcha. Adib Jatene, Cesar Albuquerque, José Serra e Barjas Negri são, dentre outros, nomes a serem lembrados nessa construção. Sem esquecer que foi o grupo dos “sanitaristas” da Constituinte, composto por médicos, geralmente de esquerda, que introduziu a noção de seguridade e inventou a colaboração público-privada no SUS.

É boa a prestação de serviços pelo SUS? Depende. Mas ele existe e atende, em tese, os 205 milhões de brasileiros.

Dou esses exemplos que mostram a capacidade que tivemos para enfrentar, mesmo que parcialmente, certos problemas que afligem o povo. Isso nos deve dar ânimo para continuar a acreditar no País.

Duas questões nos desafiam especialmente na atual conjuntura: o desemprego e a desconfiança nos governos. De permeio, o crime organizado e o ódio entre facções políticas, além da corrupção dos que usam colarinho branco. Acrescente-se que desta vez a “crise” dos governos (financeira e moral) foi criada internamente. Não há como jogá-la no colo do FMI ou dos “estrangeiros”. É tão nossa quanto a saúva ou o bicho-de-pé. Políticas equivocadas da dupla Lula-Dilma levaram a que depois do boom viesse a borrasca: os governos (não só o federal) estão exauridos, o PIB despencou mais de 8% entre 2015 e 2016, a desigualdade voltou a aumentar e o desemprego passou de 4% a 14% no mesmo período. Embora não faltassem razões jurídicas, foi o descontrole da economia que, no fundo, causou o impeachment, pois atingiu e irritou o povo e levou o Congresso a agir.

Foi para sair do impasse que o governo Temer obteve apoios: para retomar o crescimento da economia (tendo o projeto Ponte para o Futuro como roteiro). A despeito de tudo, até da crise moral, o governo vai atravessando o despenhadeiro. Retomou as condições para transformar de retórica em prática viável a exploração do pré-sal, com a reconstituição financeira e moral da Petrobrás. Está estabelecendo um plano adequado para as empresas energéticas, deu ímpeto à reforma educativa e assim por diante, sem se esquecer dos esforços para conter os gastos nos limites do Orçamento e das possibilidades de endividamento do Estado.

Não há razão para um partido como o PSDB repudiar o apoio que deu ao governo de transição, muito menos para, dentro ou fora do governo, deixar de votar a agenda reformista, que é a do próprio partido. No caso da Previdência, principalmente, as únicas questões cabíveis são: tal ou qual medida aumenta ou diminui os privilégios e, consequentemente, a desigualdade social no País? Nada justifica manter vantagens corporativas nem privilégios. O mesmo vale para uma futura reforma tributária ou para medidas fiscais, que podem doer no bolso de alguns, como é o caso do fim do diferimento de Imposto de Renda nos “fundos fechados”, mas que são justas e necessárias.

Ou nos convencemos de que por trás do desemprego, do ódio político e da violência criminosa está um grau inaceitável de desigualdade, agravado pela crise que nos levou à falta de horizonte, e lutamos contra esta situação, ou pouco caminharemos no futuro. Sem confiança no País, a começar em nós próprios, não há investimento nem crescimento que se sustentem. Essa é, portanto, uma questão coletiva, afeta ao País como um todo, e precisa ser tratada como um desafio para o Estado e para a Nação.

A questão central de um partido que nasceu como o PSDB, para se diferenciar da geleia geral que se formou na Constituinte, é a de se distinguir pela afirmação, não pela negação. Não será em função de posições que ocupa ou deixa de ocupar nos governos que se afirmará, mas das bandeiras que simboliza e das políticas que apoia para o Brasil. A hora é de coragem para mostrar como o partido vê o futuro e como colabora para formar uma sociedade melhor (apoiando medidas igualadoras e votando a favor das reformas). Não se trata de questão eleitoral, mas de compromisso com o povo e com o Brasil. A história de um partido não se escreve apenas com manifestos e programas, mas com gestos e com pessoas que simbolizem a mensagem que se quer transmitir. Se o preço para ganhar eleições for o de desfigurar as crenças - no que não creio -, melhor ficar com estas e semear para o futuro.

É em nome de sua identidade que o PSDB poderá desligar-se do governo que ajudou a formar, mas sem abdicar de suas propostas. É legítimo que um partido escolha dentre seus quadros quem, circunstancialmente, é mais adequado para ser seu candidato à Presidência e lute para alcançá-la. Sem “hegemonismos”, pois num país diverso como o Brasil todo partido precisa de aliados com quem compartilhar o poder e as crenças, o que não subentende a submissão cega nem a desmoralização das instituições republicanas.