quinta-feira, 27 de abril de 2017

Entrevista de Deltan Dallagnol

O sr. narra várias frustrações no decorrer da Lava Jato. Qual foi a maior delas?
*Deltan Dallagnol - Sem dúvida, o dia posterior à votação das Dez Medidas Contra a Corrupção [projeto de lei proposto pelo Ministério Público Federal] no Congresso [em novembro, quando país estava em luto após acidente de avião com o time Chapecoense]. Não só porque elas tinham sido desfiguradas, apesar de todo o apoio da população. A maior parte das medidas afastadas foi substituída por um projeto que buscava cercear a independência do Judiciário, a ponto de inviabilizar as investigações, o que nos fez mostrar para a sociedade que, se aquela proposta fosse aprovada, disfarçada de "lei de abuso de autoridade", nós não conseguiríamos manter o trabalho [a força-tarefa da Lava Jato ameaçou renúncia coletiva].
As Dez Medidas têm salvação?
Precisamos caminhar da indignação para a transformação, fazer esse trânsito do diagnóstico para o tratamento. Acredito que, se a sociedade se engajar, conseguiremos ter a transformação que esperamos. Por dois modos: pressão e voto. Se os que estão [no poder] não derem ouvidos aos anseios da sociedade, a sociedade pode mudar quem está lá.
O sr. disse, no livro, discordar da pesquisa Ipsos que aponta que 72% acreditam que a Lava Jato fará do Brasil um país sério. Por quê?
A Lava Jato traz à tona o monstro da corrupção, põe ele em carne e osso na nossa frente, e ele é assustador. É como ir ao médico, e ele diagnosticar que você tem problema de saúde. Se não se tratar, não adianta. A Lava Jato não cura o doente. Precisamos buscar reformas para que o crime de corrupção não compense. Entendo que a sociedade tenha essa expectativa, mas devemos tomar cuidado para não repetir o erro da Itália: uma superconfiança de que o sistema de Justiça tem resposta para todos os males. Não tem. Não basta retirar as maçãs podres. Precisa mudar as condições de temperatura, umidade, luz que fazem a maçã apodrecer.
O sr. citou a italiana Operação Mãos Limpas. Um efeito colateral dela: a ascensão de uma figura tão tosca quanto Silvio Berlusconi. Preocupa-se com um Berlusconi à brasileira?
Talvez não com um novo Berlusconi. Ele dominava grande parte da mídia italiana [quando eleito primeiro-ministro]. Temos no Brasil uma imprensa mais dividida e mais livre. Nossa preocupação é que o Brasil não avance para as reformas que mudem o sistema. Na Itália teve o diagnóstico, não o tratamento. A maior parte das punições foi esvaziada. Não só o pêndulo voltou à posição original, talvez tenha até piorado o combate à corrupção.
A cultura antipolítica que rendeu de Belusconi a Donald Trump pode chegar ao Brasil?
Existe, claro, preocupação da sociedade em buscar algo diferente. Não necessariamente será algo ruim. Depende de quem serão os candidatos. Essa é uma pergunta difícil. Não saberia dizer se surgirá algum antipolítico prejudicial ao Brasil.
O sr. destaca alvos de críticas à operação brasileira, como a prisão do ex-ministro Guido Mantega no hospital em que sua mulher operaria um câncer e sua apresentação no Power Point sobre Lula. Mas contemporiza todos esses episódios. Numa autocrítica, a Lava Jato já errou?
Qualquer ato humano sempre pode ser feito de um modo muito melhor ou muito pior. A régua para o que deve ou não ser feito, no caso da Lava Jato, é a Constituição. Na nossa perspectiva, tudo o que foi feito foi dentro dela.
Mas teve algum erro?
Teria que dar uma pensada. É claro que é sempre possível fazer melhor se tiver uma visão retrospectiva.
No começo, uma crítica recorrente era a de que a Lava Jato seria partidária, por mirar sobretudo o PT.
No início, atingiu mais três partidos específicos: PT, PMDB e PP. Por quê? Eram os partidos que colocaram os diretores da Petrobras nas áreas em que foi identificada corrupção. Na medida em que a Lava Jato se espalhou, com colaborações de empresas que trabalhavam em outras esferas de governo e em órgãos públicos, natural que tenha superado mais de 20 partidos e 400 políticos. Você dizer que a Lava Jato tinha atuação partidária é construir teoria da conspiração. Atuam neste caso centenas de agentes públicos. Ideia de partidarização implicaria que pessoas concursadas, sem nenhuma vinculação política, estivessem em conluio para prejudicar partido A ou B.
Na eleição de 2014, delegados centrais na operação exaltaram Aécio Neves nas redes sociais. Aos olhos de um Brasil tão polarizado, não poderia atrapalhar a imagem da operação?
Fazer ressalva: não tenho lembrança exata disso, surgiu tanta coisa falsa nessa era da pós-verdade. Mas, ainda que tenha havido posicionamento de um ou outro, veja que só na PF são cerca de 40 agentes. No MPF, 50. Na Receita, outros tantos. Todos escolhidos antes de aparecerem partidos e de modo aleatório, por sorteio. Isso mostra que não teve pré-ajuste, que tivemos pessoas com diferentes visões de vida atuando no caso. Ainda que tivesse uma ou outra com determinada convicção política, não identificamos nenhum ato contaminado por posição partidária.
O sr. vislumbra um fim para a Lava Jato?
Difícil dar um fim. Novas colaborações podem gerar outras linhas de investigação. E há sementes da Lava Jato espalhadas por uma série de Estados.
Mas arrisca uma data? 2020, 2023...?
Imprevisível. Quanto à minha participação, é claro que os agentes públicos cansam com o tempo. Nós estamos cansados. Mas ainda vemos contribuição a dar no caso.
Pensa no seu futuro pós-Lava Jato? Já disse que cogitaria virar pastor.
Na verdade, coloquei que eu "descogitaria" poucas coisas na vida. Mesmo até, se fosse o caso, virar pastor. Isso no contexto de me perguntarem se havia plano para carreira política. Disse que não estou considerando isso no momento.
O sr. fala que tentaram usar sua crença evangélica contra o sr. e, ao mesmo tempo, cita Deus como um guia. Como sua formação moral e religiosa o influencia no trabalho?
A frase que menciono no livro é uma que me guiou ao longo da vida: agir como se tudo dependesse de você e orar como se tudo dependesse de Deus. Não devemos nos isentar da nossa responsabilidade. Ao mesmo tempo, ela nos traz para posição de reconhecimento que o que acontece na vida não depende só de nós. As pessoas, de acordo com sua fé, verão isso de modo diferente. Pode ser fruto de acaso, azar, atuação de outros deuses. Agora, busco me pautar pelo melhor que posso fazer, e sempre orando a Deus para que o melhor aconteça. Frequento uma igreja batista, já fui líder de pequenos grupos nela, sigo os princípios cristãos, mas minha atuação como agente público é pautada pela Constituição. O Estado é laico.
O sr. não "descogita" entrar pra política? A Rede o sondou, segundo o "Painel".
Essa informação está incorreta. Até colocaram que eu teria falado com a Marina Silva. Seria um grande prazer encontrá-la, mas até hoje nunca conversei com ela. Hoje, a melhor contribuição que posso dar é com meu trabalho no caso.
A ex-ministra do Superior Tribunal de Justiça Eliana Calmon afirmou que a Lava Jato pegará o Judiciário num segundo momento e que esse Poder estaria por ora sendo preservado.
Não existe estratégia de preservação. Quando um colaborador se apresenta, nossa exigência é que traga todas as provas que tenha a seu alcance ou onde podemos obtê-las. Se ele omitir, está sujeito às consequências previstas no acordo [de delação premiada], como perda dos benefícios. Na minha perspectiva, seria uma decisão não inteligente omitir qualquer tipo de fato. Temos interesse em revelar todos os crimes, quem quer que seja. Esse é nosso dever.
A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou texto que ameniza punição ao Judiciário na lei do abuso de autoridade. Uma foto sua circula nas redes sob o título "Os Intocáveis", para ironizar benefícios da classe.
O procurador-geral da República ofereceu um projeto que é melhor que o original. Agravava penas, punia inclusive a carteirada. O que nós fomos contra eram pontos específicos, altamente maléficos, que cerceiam as investigações. Por exemplo, colocava nas mãos do condenado a possibilidade de processar criminalmente o investigador por supostos abusos, e pelo que o próprio investigado entendesse como abuso. Na prática, abriria a temporada de caça a investigadores, promotores, juízes, e em casos que envolvem réus poderosos, como a Lava Jato.
No mensalão foi Joaquim Barbosa, na Lava Jato, Sergio Moro. Como vê a imagem do Judiciário super-herói?
Vejo um risco. Especialmente de superconfiança, como se aquelas pessoas fossem salvar a pátria. Acaba eximindo de responsabilidade o cidadão, como se as pessoas vítimas da sua história, do passado, dos representantes que não nos representam. E elas, esperando heróis, ficam em posição passiva, aguardando que alguém faça o trabalho inteiro. Mas são simplesmente agentes públicos fazendo seu dever. Elas não vão trazer transformação. Precisamos escrever, como cidadãos, o livro da nossa história. O Brasil, tradicionalmente, é conhecido por ter Estado forte e sociedade civil fraca. Precisamos inverter essa equação.
Há três semanas, o sr. abordou Wagner Moura, que já criticou a Lava Jato, numa conferência em Harvard. Como foi o encontro?
Me parece uma pessoa crítica, mas que raciocina a partir de valores. Uma pessoa coerente, cujo trabalho não só como ator, mas como ativista social, eu admiro. É sempre saudável o diálogo. Foi uma conversa esclarecedora não só para que entendêssemos o ponto de vista dele, mas ele o nosso. Wagner foi extremamente cortês.

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