domingo, 4 de setembro de 2016

O risco de uma Constituição desmoralizada

Nada obstante, ignorou-se a Constituição Federal, em si autoaplicável no aporte que remete os seus destinatários à regra do seu parágrafo único do artigo 52. Assim, observou-se uma clara sobreexcedência na condução do feito, resultando tratar-se de um manifesto exercício voluntarista de alguns atores da cena do juízo então em curso. Inclusive o presidente do processo respectivo não poderia jamais ter admitido sequer para discussão um destaque parlamentar revestido de ilegalidade, por falta de objeto válido. Uma trivialidade que deixou de ser assimilada pela autoridade processante.

Demais, destaque parlamentar é instrumento de construção do processo legislativo, e disto não se trata, no específico, o processo de “impeachment”, que é de natureza político-judicial com trâmite no Legislativo. Na verdade, a postulação parlamentar do destaque em foco refletiu uma cabal obsolescência do texto do art. 68, parágrafo único, da Lei 1.079/1950, editada sob a vigência da Constituição de 1946 e somente recepcionada pela Constituição de 1988 naquilo que não divergir desta. Dizia o art. 68, parágrafo único, da Lei 1.079/50: “Se a resposta afirmativa obtiver, pelo menos dois terços dos votos do senadores presentes, o Presidente fará nova consulta ao plenário sobre o tempo não excedente de cinco anos, durante o qual o condenado deverá ficar inabilitado para o exercício de qualquer função pública.”

É o caso, porque em `46 a Constituição conjuminava as penas de perda do cargo e inabilitação mediante dosimetria desta última que era de ATÉ 5 anos. O Senado, à época, tinha de ser novamente consultado para saber em quanto importaria a segunda pena de inabilitação a ser imposta ao condenado por crime de responsabilidade, mas tampouco se cogitava de exclusão da segunda pena (igualmente autônoma). Dizia o art. 62, § 3º, da Constituição dos Estados Unidos do Brasil/1946: “Não poderá o Senado Federal impor outra pena que não seja a da perda do cargo com inabilitação, até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública, sem prejuízo da ação da Justiça ordinária.”

No regime da Constituição de `88, por outro lado, a matéria sofreu modificação, haja vista o crescente combate à malversação da coisa pública, razão pela qual o constituinte resolveu conjuminar agora as penas de perda do cargo COM inabilitação POR oito anos para o exercício da função pública, que, aliás, não se confunde com perda de direitos políticos. Diz o comando do art. 52, parágrafo único, da Constituição Federal/1988: “Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.”

Assim sendo, toda a diferença reside nas sutilezas semiológicas das preposições com efeito conjuntivo ou modal cujo emprego sucessivo resulta da evolução do constitucionalismo brasileiro.

Desse modo, não se poderia de forma alguma aplicar ao caso vertente dispositivo da Lei 1.079/50, o qual foi ABROGADO pela Constituição vigente. Absurdo dos absurdos. Paradoxo dos paradoxos. Lei abrogada, articulada por instrumento específico do processo legislativo próprio (destaque), que reforma “ad hoc” norma constitucional em vigor para inovar, fora do processo constituinte derivado, o devido processo legal para o “impeachment”.

Cabe, pois, urgente sanação sob risco de ser desmoralizada aberta e descerimoniosamente a Constituição da República que, como tal, deixaria de ser República para se tornar oligarquia. Dessa conduta recuperadora da higidez institucional do sistema de normas do Brasil vai depender ou não o sucesso de tudo o mais neste país, do regime de punibilidades e da efetividade do Direito em geral.

Com efeito, fora da lei, não há dúvida, vale a barbárie, porque não restará uma forma pacífica para a solução dos conflitos de qualquer natureza.’

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