terça-feira, 27 de setembro de 2016

Entrevista da Dra. Albertina Duarte

Entrevista publicada na Revista J.P, por Paulo Sampaio
J.P: Recentemente, o estupro coletivo de uma adolescente no Rio deixou a opinião pública estarrecida. Surgiram casos semelhantes em todo o país, sempre em classes menos favorecidas. Existe relação entre o ambiente e o evento? 
Albertina Duarte: Situações sociais trágicas podem levar a comportamentos extremos. Essas adolescentes não têm acesso à educação, à saúde, à cultura, não existe um projeto de futuro. Há um caso que não esqueço, de uma menina que engravidou na roda do funk. Ela dizia que não gostava do filho, que foi a mãe que insistiu para ela ter. A mãe é religiosa, contra o aborto, e não admite que foi estupro, sustenta que a filha quis ir ao baile.
J.P:  Com que frequência a senhora lida com casos assim?
AD: Todos os meses. Quarenta por cento dessas jovens acham que tudo bem ter relações no funk. Existem as crecheiras, que cuidam dos filhos das outras, enquanto elas vão para o baile. Lá, há uma prática que eles chamam de “táuba”. A adolescente deita e é penetrada por uma fileira de homens. Ou, então, eles deitam lado a lado e ela faz “cavalinho” um por um. Aí, há os “filhos da táuba”, frutos de um estupro de que ninguém está falando.
J.P: Ao mesmo tempo que elas acham que “tudo bem”, é complicado dizer que é consentido.
AD: Sim, porque não foi uma decisão, foi uma falta de decisão. Qual o empoderamento dado a essas adolescentes? Que acolhimento da sociedade tem uma menina que foi estuprada aos 13 anos e engravidou? Ela voltou para a escola? Ela foi mãe, continua mãe, mas não foi mulher. Até os 14 anos, por lei, qualquer relação sexual é considerada estupro presumido. No Brasil, 28 mil garotas por ano engravidam entre 10 e 14 anos; a cada 19 minutos, nasce o produto de um estupro. Então, o estupro coletivo já existe. O estupro social. Resta uma situação de vulnerabilidade.
J.P:  Incluindo as doenças sexualmente transmissíveis.
AD: Sim, e ninguém se preocupa com isso. Ainda bem que o abusador em geral é incompetente, não tem prazer na penetração, mas na submissão. Então, a relação se dá muito rapidamente e não é orgástica.
J.P:  O caso do Rio reacendeu de forma contundente uma questão muito cara às mulheres. A reação nas redes sociais foi imediata.
AD: Muitas já foram abusadas, então aquela situação desperta uma indignação interna. Eu diria que 20% das mulheres que passaram por isso não contam, mas não esquecem. Há vários tipos de estupro. Por exemplo, quando a mulher se sente “obrigada a consentir” a relação sexual com o marido.
J.P:  Na cama, há quem se porte como se não houvesse tempo a perder. Aparentemente, o timing dos relacionamentos está mais acelerado.
AD: Ninguém mais tem tempo para discutir as relações. Os espaços reservados para isso estão cada vez menores e mais profissionalizados. De repente, se eu estou com um problema, procuro a escuta de um psiquiatra, um psicólogo, um astrólogo; se quero manter a relação, vou atrás de uma terapia de casal. Geralmente, o momento em que se diz “eu não aguento mais te ouvir falando dos meus defeitos” acontece em uma situação de ruptura, quando o casal está para se separar. Eu tenho proposto que os dois tirem um dia para sair, jantar, tomar um vinho, dançar. A mulher precisa de um espaço para se sentir desejada.
J.P: Em caso de traição, existe diferença entre a maneira de pensar do homem e da mulher?
AD: Hoje eu concordo plenamente com a tese de que o homem trai para ficar no casamento, e a mulher, para sair. Ele busca um aditivo, mas preserva a relação estável que tem com a família. Então, quando ela o confronta, diz que o viu com outra, grita, joga na cara, ele nega sempre. Já a mulher costuma se envolver na relação extraconjugal e logo pergunta: “Será que eu deixo o meu casamento?”. Quando ela me fala: “Eu contei mesmo que o traí, queria ver a cara dele”, eu sempre digo para tomar cuidado com o “sincericídio”.
J.P:  A internet mudou a “qualidade” da traição?
AD: No mundo virtual, ela parece ser mais difusa. Antigamente, quando havia uma pessoa física, real, a traída ligava para ela e xingava, ameaçava, escandalizava. Na internet, as possibilidades, os códigos, os canais são infinitos. A paciente chega e diz: “Eu descobri com quem ele conversa (na net)… Mas tem as que eu não descobri!”. É como se houvesse uma constelação. Às vezes, no meio da consulta, a paciente saca o computador e diz: “Entrei no Face dele, olha aqui”. A tela do computador é muito forte, entra no cérebro, a pessoa fica transtornada.
J.P:  As reações à traição variam?
AD: Em 40 anos de profissão, nunca vi uma mulher preocupada em saber se a “outra” é inteligente ou bem-sucedida. As perguntas sempre são: “Ela é jovem?”, “Bonita?”, “Boa de cama?”.
J.P: O que é pior para o marido, que a mulher o traia com outro ou com outra?
AD: O marido que é trocado por uma mulher fica desesperado, chega a me telefonar para me perguntar se a esposa estava com problemas hormonais. Acho que ele pensa que uma taxa baixa de testosterona, ou de estrógeno, pode levar à traição.
J.P:  E quando o homem fica com outro?
AD: Costuma ser menos complicado (para a mulher). É como se ela não tivesse culpa, o problema é com ele.
J.P:  A relação que as mulheres têm com o sexo é diferente da dos homens. Muitas reclamam de pressa. Será que isso tem a ver com o número cada vez maior de relacionamentos homoafetivos entre elas?
AD: Na minha experiência, as mulheres casadas que se encontraram em uma relação lésbica afirmam que a companheira dá a elas tudo o que o homem não foi capaz; trata bem, vai buscar no trabalho, se preocupa em saber como ela está.
J.P: A escolha por mulheres, nesse caso, seria “culpa” dos homens?
AD: Basicamente, tudo o que a mulher quer é ser desejada. Quando ela sente que a outra pessoa a deseja de um jeito profundo, esse movimento é muito forte, aí entra a substituição.
J.P:  A relação da mãe com o filho costuma ser diferente da do pai. Em casais homoafetivos, a criança será criada por dois homens, ou duas mulheres. Faz falta ter um pai do sexo masculino e uma mãe do feminino?
AD: Acredito que o desejo de ser pai ou mãe, em um casal homoafetivo, tende a ser mais verdadeiro. Porque os gays e lésbicas enfrentaram tantos preconceitos, dores e riscos que esse passo de adotar uma criança já foi profundamente elaborado. Até chegar nisso, eles já se conhecem muito, discutem o assunto por todos os ângulos.  Entre héteros, fala-se de filhos como uma “consequência natural”.
J.P:  O homem é tão cobrado a ter filhos quanto a mulher?
AD: Nunca vi uma família perguntar ao rapaz por que ele não quer filhos. Aliás, se um homem vive com uma mulher, e ela não engravida, a culpa é dela. Eu costumo pedir o teste pós-coito, que poucas pessoas fazem. Serve para avaliar a vitalidade e a persistência do espermatozoide no canal vaginal. Eu gosto desse teste porque desafia o casal, valoriza a relação. Nas pesquisas que fizemos com homens, a pergunta que eles fazem sempre é: “Será que eu sou o pai?” e nunca “Será que eu serei pai?”.
J.P: De certa forma, a possibilidade de congelar os óvulos tirou dos ombros da mulher a pressão para ser mãe?
AD: A tecnologia libertou a mulher da maternidade. Na medida em que posso congelar um óvulo e usar quando tiver 47, 48 anos, eu tenho uma ferramenta incrível de independência. É claro que custa dinheiro, mas é por isso que eu defendo a autonomia financeira da mulher. Hoje, ela pode congelar óvulos e embriões. Se estiver em uma relação e quiser ter um filho, mas não naquele momento, faz a fertilização e guarda por até cinco anos.
J.P: Mas e se ela não estiver mais com o companheiro (ou ele não quiser ser o pai)?
AD: Muitos homens são pais fora do casamento, sem consultar as mulheres. Algumas vão saber desses filhos 20 anos depois.
J.P:  E se ela não tiver condição de criar o filho, e for atrás do pai?
AD: É por isso que eu recomendo maturidade ao tomar a decisão de ter um filho. Se a ideia é ter sozinha, melhor abordar o assunto em uma terapia. Ser mãe não é comprar um carro novo. Vejo mulheres que tratam a maternidade como um evento. Perguntam-se do chá de bebê, quem será o padrinho, onde fará a festa de 1 aninho. Criar filho é com 1 ano, dois, 50, algo que nos desafia sempre. Não existe ex-mãe.

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