sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulos 25 e 26 (final)


Capítulo 25
  A VAZANTE –
O Amazonas está ridicularizando todas as crendices, tradições e esperanças dos varzeiros neste inacreditável 1971. Já se chegou ao dia de Santo Antônio, 13 de junho, e o rio ainda continua fazendo misérias. Além de não ter vazado, prossegue subindo, como se o Governador dos Mundos houvesse permitido uma punitiva e catastrófica subversão de leis que criou para serem respeitadas. A anormalidade, sem precedentes conhecidos, leva o filósofo Zé Potoca a emitir parecer:

– Égua, meu padrinho! Nem Santo Antônio, amigão dos caboco, deu jeito no corno desse Amazona, que nunca tinha enchido no dia dele. Paresque Deus enturtou muito a cuia esse ano e não tá com pressa de endireitar a bichona. Vute!...

– Nunca a gente vimo uma marvadeza dessa – admite Presidente. Os tempo tá mudado. Ariramba cantou pra se danar, a Lua só véve virada pro lado das terra e o diabo do rio nem dá bola pra nada disso, que sempre foi sinar certo de vazante.

Um dos axiomas da várzea é este: o pior de qualquer enchente será sempre uma demorada vazante. Quando o declínio do rio se processa com desesperadora lentidão, aos centímetros, tudo o que não presta e ainda não havia aparecido acaba dando um ar de sua graça ou um vento maldito de sua desgraça: epidemias, falta quase total de alimentos, bois sobreviventes caindo, fracos, e morrendo aos lotes.

Mas a esperança, embora pequenina e impotente como brasa de cigarro em noite borrascosa, jamais deserta dos corações supliciados. Encarapitando-se nas marombas erguidas várias vezes, os caboclos sempre nutrem o sonho de que já no dia seguinte as águas comecem a descer. E só abandonam mesmo os tapiris quando não lhes é possível levantar sequer mais um palmo de assoalho, porque ele ficará praticamente unido à cobertura. Talvez Euclides da Cunha sentenciasse que o varzeiro é, antes de tudo, um otimista ou um teimoso, pois não há diferença acentuada entre os dois estados d’alma.

Ainda assim, milhares desses esfarrapados filhos de Deus são, de repente, constrangidos a largar tudo, com uma trouxa ou um panacu às costas. Vão buscar abrigo nas terras altas ou, em última instância, na cidade hostil que nada lhes pode oferecer além de compadecidos olhares e discursos bombásticos nas cúpulas deliberantes. É, esse, um êxodo talvez mais doloroso do que o provocado pelas guerras fratricidas: nestas, os homens fogem com um medo imenso das brutalidades dos seus semelhantes, enquanto nas enchentes assassinas os frangalhos humanos – verdadeiros bichos que conduzem uma alma imortal! – correm, espavoridos, sem pão, sem lar, sem fé, sem saúde, amaldiçoando o rio e os deuses sem coração. Mas o varzeiro acaba sendo, curiosamente, uma perfeita imagem da folclórica e masoquista “mulher de malandro”: quanto mais apanha e é expulso de casa, menos desejo tem de abandonar o cruel companheiro. Afinal, selvagem como for, ele sempre lhe fornece o sustento e, por isso, a pisoteada vítima do cafajeste geralmente volta para mais uma reconciliação, embora houvesse partido a fumegar de ódio...

Na “Fazenda Apuizeiro” – como em todas as demais – tudo é desolação, doença, desconforto. Os políticos, naturalmente, não cumpriram a promessa da madeira para a maromba... Todos estão fortemente gripados, a gemer, com febre e frio, no fundo de redes malcheirosas. Duas das crianças ainda receberam um diabólico acréscimo às suas espantosas agonias: uma desgraçada e horrível “tosse da guariba” provoca-lhes asfixiantes acessos em que os olhos se esbugalham e a mãe chora, sem saber como acudi-las. Coqueluche, sarampo, catapora, tifo e gripe, além de outros simpáticos integrantes de um alegre cortejo de pragas, andam varrendo o Baixo Amazonas. O “estranho mal” a que a emissora radiofônica de Santarém fizera referências, e que estaria dizimando reses em outras áreas, já fulminou quase todo o plantel de Antônio Presidente. Escaparam apenas seis animais, porque, para não os perder, o dono decidiu conduzi-los à terra firme. A medida, no entanto, não impediu que ele recebesse um recadinho: – O seu Nenen Tangará mandou dizer pro senhor, seu Presidente, que um boi morreu, onte, de erva venenosa. Nós achemo ele já meio podre e joguemo no rio – informa o emissário.

Como terá de entregar ao proprietário do campo de invernada um dos animais para pagar o aluguel, o marido de Dona Maria Flor ficará somente com quatro unidades. Isto, se não vierem mais surpresas até a vazante.

Há um estimulante açodamento nos gabinetes refrigerados onde se decidem os destinos das multidões. Todos os inquietos prefeitos da vastíssima área flagelada pela descomunal inundação acabam de decretar, ante contratados fotógrafos, “estado de calamidade pública” em seus respectivos municípios. Isso lhes dará direito ao recebimento de gordas verbas, a fundo perdido. Ontem, o governador sobrevoou – pela segunda vez, neste ano – a região submersa. Contam os jornais da oposição, a propósito da caridosa providência oficial, uma historinha que o partido majoritário desmente, indignado.

Em certo instante do passeio aéreo, olhando através da janela de vidro, o governador apontou alguma coisa lá embaixo e fez a pergunta:

– Mas por que esses caboclos cabeçudos teimam em fincar pé nas casas afundadas e não se mudam para aquela praia logo ali, tão grande e enxuta?

Respeitosamente, um dos assessores, gaguejando um pouco, esclareceu: – Não... Não é praia propriamente, Excelência. São as águas barrentas do Amazonas que, à luz do Sol e da altura em que voamos, causam essa ilusória, embora muito válida, impressão.

Pronunciamentos inflamadíssimos denunciam a ânsia desavergonhada de se capitalizar, eleitoralmente, a penúria comunitária. De concreto, entretanto, quase nada se fez, afora a remessa de vacinas contra tifo. Deitando falação à imprensa, em Belém, um dos gestores interioranos ensina, de cátedra:

– Como filho do Baixo Amazonas e administrador de um dos mais prósperos municípios daquela circunscrição geográfica, sei que nada, mas nada mesmo podemos fazer numa emergência de tal magnitude. São incontroláveis fenômenos naturais, onde se manifesta, clara, a santa e soberana vontade de Deus. Basta que se reze, pois, afinal, é um sofrimento provisório de todos os anos e logo mais retornará a fartura de verão.

Na mesma edição que agasalha o douto pronunciamento do esclarecido prefeito, há outra preciosidade. Apesar de não decifrarem o mistério do mal que vem dizimando os rebanhos, técnicos de renome esbanjam erudição científica ante boquiabertos repórteres. Pontifica um deles:

– A raríssima epizootia ainda não está sob controle, uma vez que seu diagnóstico permanece ignorado, resistindo a todos os nossos testes sofisticadíssimos. Mas, a presumir pela sintomatologia, já se vislumbram animadores indícios de que estamos em confronto com uma excepcional virose atípica. Mais cedo até do que imagina, isolaremos seu agente etiológico, cuja propagação parece estar a cargo de um vetor alado, talvez o próprio “Culex fatigans”.

Entre essas e outras iguais boçalidades, junho vai terminando. À força de muito chá de limão com alho, a turma de Presidente recupera-se da gripe, embora persista a coqueluche ou “tosse de guariba” que, às vezes, se arrasta por quase meio ano. Combalidos, pálidos, todos já estão de pé e adquirem novo alento quando o dono da casa faz a primeira verificação da manhã e anuncia, com um largo sorriso: – A água vazou cinco dedo! Paresque agora vai.

– Com o empurrão da Mãezinha do Céu! – completa Maria Flor. Esse ano nós vai fazer uma ladainha discunforme de bunita!

É, de fato, o início da esperadíssima vazante, que representa uma ameaçadora faca de dois gumes, apesar das alegrias que dispara: enquanto revitaliza apunhalados corações, faz desabarem outros medos, novos riscos sobre as almas de infelizes que tanto, tanto já amaldiçoaram a enchente.

Na proporção em que os campos se descobrem e reaparecem os “tesos” – porções enxutas em meio aos alagados – os fazendeiros vão descendo das marombas os esqueléticos animais que sobraram, soltando-os nos atoleiros para aproveitarem algum alimento que já pode ser encontrado. Raquíticos e famintos, os bois lançam-se a uma ávida busca de pasto e devoram tudo o que lhes parece comestível. Em tais circunstâncias, é muito comum ingerirem ervas venenosas, além das possibilidades, sempre temíveis, de outras desgraças. Podem apanhar frieiras ou ser, de repente, engolidos pela fatal “lama gulosa” – extensões de tabatinga espessa e pastosa, onde afundam homens e bichos. O rio vaza, sim, mas cobra o seu preço infernal, como um bandido capaz de matar um casal e, antes de fugir pela janela, ainda se diverte pondo fogo no quarto das crianças.

De qualquer modo, o estado coletivo de espírito é muito menos deprimente do que nos sombrios dias de novembro, porque, chegado o repiquete, os ribeirinhos sabem que seis meses de incríveis provações os aguardam. Agora, ao contrário, cada hora que passa deixa-os mais perto do tempo bom, numa estimulante contagem regressiva até ao novo encontro com a felicidade perfeita – sol, pirapitingas, acaris, queijos, piracaias, festas, abundância de tudo!

Alegre, Maria Flor profetiza, provando o caldo cheiroso: – nunca mais a gente vamo pelejar com uma enchente amardiçoada como essa! Deus tá tirando a cangalha do lombo dos caboco!

Os céticos e cínicos diriam que Deus ficou bom do fígado e vai recuperando o bom humor.

Capítulo 26
  A VIDA CONTINUA... –
O rio vaza e vaza bem. Já se observam, na várzea inteira, os característicos e animadores sinais do verão que chega, tão bem-vindo como filho seqüestrado que acaba de ser solto. São evidências que inundam de encorajador entusiasmo quantos dependem vitalmente das condições do tempo, não apenas por interesses econômicos, mas para a própria sobrevivência no ambiente adverso.

O buliçoso e assoviante vento geral é, a essa altura, uma presença abençoada e alegre nas fazendas. Ele passa os dias claros brincando de cavalgar os galhos, de pôr as folhas em adoidadas danças. E sacode as fruteiras como os moleques peraltas que desejam desabarem os apetitosos cajus, mangas e goiabas. As refrescantes ventanias de agosto têm o poder mágico de arejar também os corações: os risonhos varzeiros exultam ao sentir que, apesar de todos os pesares, não há nada equivalente ao contentamento de se estar vivo e com saúde.

Bandos de marrecas ariscas, ananaís e patos selvagens, após desconfiados sobrevôos exploratórios, vão pousando pelas redondezas. Até um tracajá afobado, que desovou antes do tempo, Zé Potoca já trouxe para casa. Esperanças, e mesmo certezas, brotam, afinal, em almas arrasadas por tantas batalhas perdidas.

Essa prodigiosa renovação interior dos ribeirinhos apresenta estranha afinidade com um rotineiro procedimento estival, tão ligado às suas vidas: a queimada. Da mesma forma como as matérias orgânicas das árvores torradas pelos incêndios de novembro aumentam a fertilidade do solo na primeira semeadura, as lágrimas vertidas nos duros tempos da inundação parecem funcionar, por uma condescendência dos céus, como um poderoso adubo nos corações dos corajosos caboclos – heróis anônimos de tão inglórias epopéias.

O rio continua vazando, e vaza bem. A fartura volta devagarzinho, chegando encabulada, como quem não dispõe de um bom motivo para se desculpar por tanta demora. Antônio já encomendou até um reprodutor e duas vacas bonitas. Dará o batelão como pagamento. Mais tarde arrumará outro, pois as coisas vão melhorar.

A tarde vai findando, na colorida agonia das luminosas jornadas amazônicas de agosto. De cotovelos apoiados no parapeito do alpendre, Maria Flor e o marido olham as quatro reses que, abanando o rabo, espantam os primeiros carapanãs ali no curral meio enlameado. A temporada que passaram nos campos da terra firme lhes fez muito bem: os animais estão em satisfatórias condições físicas.

Fitando uma tronqueira que desce, na correnteza, com alguns mergulhões servindo-se da gratuita jangada para um passeio crepuscular, Presidente fala quase para si mesmo: – Se Deus quiser, nós se ajeita de novo esse ano. O roçado apodreceu, mas eu vou fazer outra queimada.

Atravessando o braço em torno das costas nuas do esposo, a mulher concorda, animada:

– As coisa vai mudar! A Fuluca, do Chico Zebu, me disse que eles perderam tudinho – o gado, os três filhos e a barraca. Tão na misera, morando com uma tia lá no Marimarituba.

Alisa a cabeleira do querido companheiro e o encoraja:

– Não se avexe não, meu bem. Nós sabe que varjero tem que ter tutano pra começar tudo de nuvo, quando é perciso. Nós inda fomo até muito feliz porque só perdemo três curumim, fiquemo com os outro três, a casinha, o barco e quatro bui bunito. A gente inda levantamo a cabeça e vamo ficar mais melhor do que nós tava!

Junta, de repente, as mãos em prece e, com os olhos brilhantes, postos no céu, fornece a infalível garantia:

– Eu tenho uma baita fé na Mãezinha do Céu! Ela vai ajudar nós!

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 24


  O VELÓRIO –
Maria Flor está cerzindo umas roupinhas das crianças. Atraída por movimentos de remos forcejando contra a correnteza, levanta os olhos do trabalho: uma canoa com dois vaqueiros chega à casa da fazenda.

– Ei, seu Presidente! – O papai não tá – responde um dos garotos. – Que é, Pedroca? – interroga a patroa, reconhecendo o caboclo.

De cabeça baixa, o reforçado varzeiro comunica:

– Seu Romuardo Bicudo morreu, não faz bocado. Paresque foi besterada no coração dele. O enterro é amanhã e a gente viemo convidar pro quarto.

Espantada com a brutal notícia, Maria faz o sinal da cruz, reza em silêncio e promete que combinará com o esposo, ao chegar com Zé Potoca, o jeito de comparecerem à residência enlutada.

Nesse mundo líquido, cujo único e frágil cordão umbilical com a civilização é um rádio de pilha, velório – ou “quarto”, como eles chamam – é uma forma de divertimento, quase uma festa. Sem lazer algum, a braços com uma luta feroz e diuturna pela simples sobrevivência, os ribeirinhos transformam a vigília para um defunto em desinibida reunião social onde nada falta: comilança, beberança, baralho, dominó, mexericos. Por isso, ninguém perde um desses encontros e cada família colabora com alguma coisa para amenizar a situação dos herdeiros sem herança. Como ocorre nos puxiruns, leva-se um pouco de querosene, farinha, café, bolacha, velas de cera e cachaça.

Deixando as crianças com Zé Potoca, lá se vai, à noite, o casal. Apesar de a distância ser pequena, como está ventando muito, preferem usar o barco “Flô das onda II” para vencer os quatro quilômetros da viagem. Como contribuição para o ato fúnebre, levam um quilo de farinha, açucar e meio litro de querosene.

Encontram muita gente e pouco choro. Protestante não é, em geral, espalhafatoso ante a morte, pois, convicto de que o extinto está salvo só por causa da fé que possuía, de certo modo exulta quando um irmão se vai, porque ele ganhou o céu antecipadamente, apenas dizendo “Jesus é meu Senhor”. Após cumprimentar os parentes do falecido, cada qual se arruma como pode. As mulheres fofocam na ampla cozinha, enquanto os homens fazem avaliações de prejuízos na sala da frente. Não há velas acesas e nem se fala em rosário de Nossa Senhora, desde que o morto era Testemunha de Jeová, não tendo necessidade alguma dessas gorjetas aos santos para transpor, lampeiro, os portões do paraíso...

Conversa vai e vem, café aparece e some, cachaça chega e não dá para quem quer. A família é protestante, mas respeita os costumes da várzea e deixa beber quem quiser. Começa, então, um animado “sete e meio”, o famoso e fácil jogo de baralho. Formam-se três rodas, sendo uma na mesa grande e duas no chão, à luz de resfolegantes “Aladins” – candeeiros de luxo, usados somente em ocasiões especiais.

– Hum!... Essa curimatá muquiada tá muito porreta! – proclama Nhuquinha Catauari, farejando o ar, de cara erguida. O cheiro da coirona mata a catinga do querosene. Vou tirar a barriga velha da misera nesse quarto do Bicudo.

– Bota mais uma aqui, Rosa! – pede Miró Sardinha. Hoje eu quero encher a cara pra não me alembrar dos perjuízo dessa enchente do cão.

E a temperatura vai esquentando... Saem anedotas pouco familiares... As reações evoluem das discretas risadinhas particulares às estrondosas gargalhadas coletivas... Come-se enquanto se joga baralho, dominó e conversa fora. Brinca-se. A noite avança. De repente, a queixa insultuosa: – Tu tá rubando, seu curno! – grita Zeca Tralhoto, a esfregar as cartas do baralho no focinho de Juca Toró.

Com várias doses de aguardente no lombo, o ofendido nem pede explicações: planta o braço no pé do ouvido de Tralhoto, quase tão bêbado quanto ele próprio e... o tempo fecha! Lá da cozinha, a mulherada berra: – Meu Deus! Respeitem o falecido!...

Não se respeita nada. Reviram-se as cadeiras, candeeiros são quebrados. Até o defunto desabou da cama onde estava, pois, generalizado o conflito e com ambiente meio escuro, um dos brigões caiu por cima dele. Porre como se encontrava, julgou que fosse um adversário e não teve dúvidas: encheu de murros as ventas de Romualdo e o fez rolar para o chão, a pontapés!

Quase todos trocam coices e poucos tentam acalmar os valentes, pondo alguma ordem naquela tremenda bagunça. Diversos caíram no rio, à força de empurrões, tapas ou pisões, e a velha Nica Farofa está de cabeça partida, tal o entusiasmo de um cascudo que lhe acertaram com um dominó. Musculosos e abstêmios, os filhos de Romualdo Bicudo, ajudados por Presidente, gritam, pedem calma, por entre bofetões e gravatas distribuídos entre os que precisavam aprender a criar vergonha ao menos em velórios.

A muito custo, após dez minutos de pau solto e escoriações de larguras variáveis, o ambiente retoma a perdida paz. O defunto readquire sua dignidade comprometida, providenciam-se curativos. Os mais bêbados são postos em sossego, amarrados nas canoas, e a liturgia prossegue, entre novas doses de café, merendas e joguinhos de dominó e baralho. Ninguém bebeu mais, porque a cana acabou. A noite já exibe vergonhosas rugas de velhice remelenta. Não tardará muito a ceder, emburrada como fedelho de castigo, o trono a um novíssimo dia de luzes e de luto, de lutas sem lucros.

Sepultaram Romualdo no cemitério de Paricatuba e ele se enfiou no túmulo com o óculos na cara esmurrada: era sua derradeira vontade, expressa nos estertores da morte. Com sacrifício, pagara as lentes esverdeadas no crediário da “Ótica do Povão”, lá na cidade, e não queria deixá-las para ninguém. Talvez pretendesse apreciar melhor o festim dos vermes sobre suas carnes...

Voltando ao lar, Maria Flor comenta, entre dois bocejos: – Puxa! Esse quarto do seu Romuardo até que não foi ruim. Tem uns tão chato que dá até vontade de dormir. A briga foi animada e eu só não gustei de jogarem o defunto no chão.

Antônio concorda, com uma restrição: – É. Eu só não achei mais melhor porque até agora não sei quem foi o filho duma égua que me sapecou um baita beliscão na bochecha da bunda, na hora da porrada. Quase arranca um pedaço. Vou até fumentar com andiroba e sar.

Vute! – finaliza a companheira. Quem sabe, meu bem, se não foi o falecido Bicudo.

Benzendo-se, explica a hipótese: – Ele era tão brincalhão!...

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 23


  FINANCIAMENTOS –
Antônio Presidente continua indo, com Zé Potoca, ao corte diário do capim. Agora, as reservas mais próximas de canarana e premembeca não ficam a menos de três horas de viagem... só de ida! Às vezes, nem dá sequer para se carregar completamente o alentado batelão. E os bois remanescentes, desnutridos, vão morrendo, a prestações, sobre a maromba...

Nesta manhã, Antônio esfrega os braços, tomados por uma legião de aguerridas formigas-de-fogo, quando o afilhado lhe diz, coçando a cabeça: – Ah! Meu padrinho, eu me esqueci de lhe avisar que o seu Quinca Pereba quer falar com o senhor. Eu encontrei ele onte lá no Aningar do Papagaio.

– E só agurinha que tu havera de te alembrar, rapaz?! – ralha o pecuarista, ainda matando formigas. Eu mardo que deve de ser coisa de muita percisão. Vamu passar pela casa dele quando a gente vortar de vorta.

No retorno, fazendo um desvio que lhes custa mais uma hora de varejão, param no “Retiro Pereba” e logo Presidente fica sabendo da boa novidade. A informação compensa o acréscimo de cansaço:

– O Miró Sardinha veio da cidade – explica o desdentado e narigudo Quincas – e me disse que um banco oficiar do gumverno vai começar amanhã a sortar muita grana pros criador da varja.

Pondo atrás da orelha o cigarro que apagou amassando a ponta no balcão da quitanda, completa:

– Dizque não tem dificurdade arguma. Tu entra lá e sai logo com o dinheiro no borso, porque o gumverno abaixou decreto.Isso já deu até na Rádio Rurar.

– É mesmo, meu mano?! – fala, animado, Antônio. Eu vou largar toda essa pitomba e amanhã tô em Santarém, porque perciso muito de um dinheirinho.

– Tu vai mais eu – intima o dono da casa. Deixa o teu motor pro Zé Potoca se virar no capim. Eu tava duido pra falar cuntigo, pois já faz um mês que nós não se vê. Eu sube que aquele ladrão do barco “Jutaicica” também fez tu de besta. O cachurro passou a perna em tudo quanto foi caboco.

– Então ele andou por aqui também? – indaga, encabulado, o esposo de Maria Flor, que não esperava uma referência direta à vigarice de que foi vítima.

– Aquele filho duma égua me deu um prejuízo de quase mir cruzeiro! – exclama Pereba, vermelho de raiva. Só não sangrei ele porque tem o diabo pra tirar e Deus pra dar.

– É mais melhor nós nem falar nisso, pois meu zóio fica logo atravessado de sangue – conclui o proprietário da “Fazenda Apuizeiro”. Que hora, então, tu vai me pegar lá em casa? – Amanhã, cedinho, por vorta das seis hora eu chego lá.

Ciente da esperançosa notícia, Maria Flor não se entusiasma. Talvez a enigmática intuição, o misterioso sexto sentido das mulheres esteja a lhe segredar qualquer coisa capaz de inibir súbitas e prematuras alegrias numa aposta contra o futuro. Limita-se a uma breve advertência, sem parar de mover bem depressa o abano de palha com que atiça o fogo: – Toma cuidado, Antônio. Quando a esmola é grande, o santo fica descunfiado, eu já te disse umas mir vezes.

Antes das seis da chuvisquenta manhã, Quincas Pereba está no porto da fazenda, em seu barco “Vitora Reja”, maior que o de Presidente. A saudação é típica da época. Sem um “bom dia”, vai dizendo: – A água cresceu um dedo de onte pra huje, seu Antônio. Vute! Se continuar assim, ela inda tufa até na Lua nova que vem. Deus tá mesmo zangado com nós. Eu não mardo que mar os caboco fez pra Ele.

– É – admite o companheiro, embarcando. Tudo dia eu tô aí perdendo arguma coisa, mas tô conformado com a mardita sorte. Na enchente de 1953 eu fiquei quase na misera, mas dispôs de pelejar muito e aduecer de tanto trabalho, acabei levantando a cabeça de nuvo. Essas raiva de Deus é como pira de cachurro: dá e passa.

Nessa permuta de infortúnios sofridos, e acompanhados pelo vaqueiro Mamede, eles consomem as três horas de percurso até Santarém. Pereba já levantou três vezes o assoalho da residência, trairambóia matou-lhe cinco animais, piranhas puseram oito vacas fora de ação. Agora, como sobremesa servida por vampiros ávidos de sangue, pipocou uma gripe desgraçada que já atingiu quase toda a família, com tosse braba, catarrão, febre e dor no peito.

A julgar por tantas confidências amargas, trocadas sob o embalo das ondas, não teve um pingo de razão Humberto de Campos ao garantir que “o andor da desgraça se torna mais leve quando é carregado por muitos.” Nessas faces sulcadas por tantas preocupações, mil pesadelos e incontáveis canseiras, não se percebe o menor indício de alívio pelo fato de saberem que as pesadas cruzes cabem a todos.

Deixando o “Vitora Reja” amarrado no porto da Vila Arigó, sob a vigilância do caboclo que trouxeram, os dois pecuaristas ajeitam os cabelos, passam as mãos nas roupas úmidas e amarrotadas. Encaminham-se logo para a suntuosa agência do banco que fica alí perto. Ao empurrarem a enorme porta de vidro, sentem, com algum espanto, a surpresa incômoda de um ar muito frio que lhes resseca as narinas. Mas, reunindo coragem, vão no rumo do funcionário mais próximo: – Me diga uma coisa, seu menino – fala Quincas, menos tímido. O Banco já tá sortando dinheiro pros criador da varja?

Sem erguer os olhos do papel que lê, responde o burocrata: – As liberações de crédito começaram ontem. – E o que nós percisa fazer pra arreceber logo o nosso? – Um momento, senhores, por obséquio. Já vou entregar a relação dos documentos necessários.

O atendente conversa uns cinco minutos com uma graciosa estudante que acaba de chegar e depois apanha uma folha mimeografada e, voltando-se para os caboclos, rosna, incisivo:

– Aqui está. Se o pretendente ao empréstimo deixar de cumprir uma só destas oito exigências aqui especificadas, nem adianta mais voltar aqui, pois nada poderemos fazer. São ordens expressas da nossa matriz.

– O diabo é que nós não sabe ler, seu menino – gagueja Pereba. Se o senhor não fica brabo, diga que papelada nós tem de arranjar, que a gente vamo logo buscar tudinho e vorta de vorta. Nós tem que ir hoje pra farja tratar do nosso gadinho.

Mal humorado, o bancário desfia, lendo rapidamente: cadastro atualizado neste Banco; certidão negativa do Cartório de Protestos, obtida nas vinte e quatro horas anteriores à eventual concessão do crédito; prova de quitação com a Justiça Eleitoral; CPF; certificado de regularidade perante o INCRA; comprovação, testemunhada em cartório, do número de reses que possui, pois o financiamento se fará na base de vinte e cinco mil cruzeiros por unidade; indicação de dois avalista idôneos, que devem ser aprovados pelo Banco; e, certidão negativa de impostos municipais.

Devolvendo o papel ao caboclo perplexo, o funcionário passa a atender outro cliente. Os dois varzeiros retiram-se, de cabeça baixa e chapéu na mão. Lá fora, na escadaria do prédio, fitam inicialmente um ao outro e, depois, mudos, como feras acuadas que não sabem para onde correr, passeiam os olhos tristes pela vasta praça de São Sebastião. Calado desde o ingresso no estabelecimento, Antônio rompe o silêncio – funeral de mais uma efêmera e besta esperança de matuto:

– Bem que a Maria Flor não se assanhou com essa história. Mulher é bicho danado pra adivinhar. Se eu ouvisse sempre os parpite dela, não havera de fazer tanta bestera na merda dessa vida. E agora, seu Quinca? – Agora, meu mano... Agora vamo comprar gasolina pra vortar de vorta e vamo simbora. – Acende um cigarro e assegura: – Nem passando um mês aqui na cidade, nós não havera de arrumar esse monte de paper pra receber dinheiro.

– É, vumbora pra casa – concorda Presidente. Mas pra não perder toda essa viagem do cão, tu me espera um pedacinho que eu vou comprar umas coisinha que eu perciso. É mais melhor até tu ir logo pro purto do mercado, porque é lá praquelas banda que eu vu fuxicar atrás dos bagulho.

Pereba rasga em pedacinhos a maldita relação de exigências burocráticas. Os fragmentos saem voando, exatamente como os farelos de um sonho doce e fugaz... Separam-se os amigos e colegas de sofrimentos. Por intolerável ironia, passa, nesse exato instante, um carro de propaganda em que o locutor berra, através de estridentes amplificadores: – Atenção! Muita atenção, senhores pecuaristas! Os Bancos oficiais dos governos estadual e federal, em suas agências desta cidade, avisam que iniciaram ontem, e prosseguirão durante quinze dias, os generosos financiamentos em tão boa hora autorizados pelas autoridades governamentais, para minimizar os efeitos da calamitosa enchente deste ano. Aproveitem as grandes facilidades de crédito fácil e imediato, sem burocracias.

Quando vai atravessando a Praça do Pescador, o dono da “Fazenda Apuizeiro” enxerga, por acaso, fumando um charutão, aboletado em reluzente automóvel vermelho, alguém que ele muito conhece. Depressa, entretanto, o caboclo olha para o lado oposto e prossegue andando, pois perigosos ímpetos assassinos lhe aceleram o coração: acaba de ver Raimundo da Silva, da empresa “Jesus dos Anjos Ltda”, proprietária do barco “Jutaicica”.

Maria Flor está com o rosto na porta do telhado – o buraco aberto por exigência do rio – esperando os viajantes. Ao ver que chegam em silêncio, com cara de quem vomitou lombriga, tem certeza de que nada obtiveram, mas indaga: – Que tar? Os home sortaram a grana pra vocês?

– Não – responde o marido, sério e já de pé, carregando alguns embrulhos. Percisa tanta papelada que só a gente se mudando pra cidade pra arrumar tudo o que eles quer.

– Eu não te disse nada pra dispôs tu não falar que eu tava jogando terra na paçoca – revela a mulher. Mas meu coração farejava que essa porquera não ia dar certo nem pelo rabo do cão. Onde vocês já viram arguma vez o gumverno dar coisa que preste pra gente? Essas peste só mostra os dente e parece anjo quando que pegar voto dos besta. Cambada de cachurro!...

Servindo-se de sua expressão predileta para escapar de diálogos desagradáveis, Presidente despede-se de Pereba e Mamede, dizendo: – É mais melhor nós não falar mais nisso. A gente véve pra sofrer e tem que agüentar como macho essas aporrinhação. Dá essas bolacha pros curumim e vamo comer arguma bestera que eu tô com fome.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 22


– O DEBATE –
A imprensa de Belém do Pará possui assunto farto para muitos dias. Os “calamitosos efeitos da fenomenal enchente de 1971” constituem o prato principal das edições. Como o povo sofre de memória curta, não faz diferença a repetição de manchetes e até de alguns textos dos anos anteriores.

Nesta quarta-feira, os matutinos exibem fotografias verdadeiramente sensacionais: maromba que desabou em Oriximiná... reses atacadas, na várzea de Alenquer, por um estranho mal, ainda não diagnosticado... políticos de cócoras, confortando enfermos em barracas submersas e até o líder da maioria na Assembléia Legislativa atravessando o buraco da cobertura de um tapiri...

Além da entrevista do Secretário de Saúde, anunciando “severas medidas do governo para pôr um termo definitivo à grave e intolerável situação”, os jornais agasalham ainda outros informes de relevante interesse comunitário. Pronunciam-se fogosos e eruditos os debates entre os deputados, pois o combativo parlamentar Arcângelo Salvador inscreveu-se para ocupar a tribuna durante o grande expediente. Mas a bancada oposicionista, segundo os cálculos de bem informados colunistas políticos, deverá colocar em boas enrascadas oratórias o porta-voz do governo estadual.

Três horas da tarde. Presentes todos os ilustres representantes do povo e repletas as galerias, tem início a esperada sessão. Feitas algumas comunicações sem importância, Fortunato Filho, que preside o Poder Legislativo, concede a palavra ao líder situacionista.

Havendo integrado a comitiva que, no último fim de semana visitou o Baixo Amazonas, o posudo orador começa historiando as “superiores razões da patriótica viagem de estudos”. Em seguida, realça o “comovedor interesse deste grande governo em resolver a problemática dos nossos queridos irmãos da hinterlândia, sobretudo porque a várzea se erige como altaneiro propugnáculo da promissora economia planiciária”. Logo, entretanto, com a devida autorização do arrebatado tribuno, intervém o deputado Trancoso Setembrino, aguerrido componente da facção contrária:

– Ao repetir, com irritante insistência e condenável servilismo, que o governo atual sofre com a sorte dos ribeirinhos, Vossa Excelência insinua, desastrada e maldosamente, que nenhuma administração anterior fez qualquer coisa por essas massas infelizes. Quero apenas refrescar a memória do pobre deputado, dizendo-lhe que o Pará está sendo governado há sete anos pelo mesmo partido político.

– Agradeço a intervenção de Vossa Excelência – reinicia Salvador. Deixo claro, porém, que não estou atirando lama sobre quem quer que seja. Insisto apenas em proclamar – e o faço com desassombro, sem temer contestações! – que, sem demérito para os demais, o governo que aí está vem fazendo até o impossível para recolocar sorrisos definitivos nos rostos amargurados desses mártires sacrossantos das várzeas, às vésperas de sua radiosa e gloriosa libertação total! Órfãos da vida, esquecidos pelo próprio Deus, eles são, porém, lembrados por autoridades que chegam aos páramos do sublime, agasalhando-os amorosamente, como enternecidas mães desveladas, nos abismos de seus corações!

As galerias tentam manifestar-se, mas tímpanos soam, o silêncio é mantido e Setembrino aparteia:

– Dá até vontade de chorar, nobre colega! Palavra de honra! Os corações desses seus angélicais correligionários devem ter parentesco bem próximo com os velhos e sacolejantes ônibus desta capital: por mais superlotados que estejam, sempre têm lugar para mais quatro...

– Aceito intervenções ao meu discurso, mas só em termos elevados, à altura das magníficas tradições desta augusta Casa do Povo! Não admito molecagens de Vossa Excelência, nem de qualquer outro parlamentar. Estamos aqui, afinal, para dizer aos paraenses que confiem em nós e serão inteiramente felizes. Se o eminente membro da oposição repetir a deselegante atitude, não mais lhe concederei o direito de me perturbar este importantíssimo e histórico discurso.

– Peço desculpas ao brilhante deputado – penitencia-se, com visível cinismo, o ofensor.

Risos abafados entre os assistentes... O presidente da Casa exige compostura e ameaça evacuar as galerias. Arcângelo prossegue, dando ciência, no mesmo diapasão bombástico e enjoativo, das maravilhas planejadas pelos técnicos das Secretarias de Saúde, Agricultura e Obras, “trabalhando em perfeito e patriótico entrosamento para a rápida redenção dos varzeiros”. Em certo momento, declara, pomposo:

– Como intérprete humilde, mas leal, dos anseios governamentais, é com intensa emoção que informo agora: ultimam-se os detalhes de uma vasta, de uma formidável “Operação Salvamento” – coisa sem precedentes! – objetivando remover, no prazo máximo de uma semana, cerca de quarenta mil pessoas, das várzeas inundadas para as cidades mais próximas! Será, graças ao ínclito governador e a Deus, a salvação irreversível dos flagelados! – brada, triunfal, de braços abertos.

– Peço um aparte! – exclama Setembrino.

– Com grande prazer – aquiesce o tribuno, passando o lenço no rosto suado.

– Isto seria uma alegre palhaçada se não fosse revoltante, afrontoso, intolerável e trágico! Fala-se em retirar, às carreiras, milhares de párias dos alagados infernos para as zonas urbanas, o que, além de impossível e imbecilmente demagógico, seria apenas uma forma diferente de matá-los à mingua. Fugiriam à morte por afogamento, fome e epidemias para se acabarem, cadavéricos, em marombas erguidas na periferia do asfalto ou nas sarjetas, mendigando nas ruas! Isto é uma irresponsabilidade criminosa, possível de processo e cadeia. É mais um atestado público da monumental ignorância, da estupidez jumentícia com que são tratados os problemas regionais, senhor presidente e senhores deputados.

Vermelho de raiva, Salvador retruca, gritando:

– Com essas demagógicas palavras, Vossa Excelência prova estar abissalmente alienado de uma realidade que até os cegos enxergam. Saiba que nós acabamos de passar nada menos de dois dias andando na área afetada pela enchente e sentimos que não há outra solução de igual magnitude e tanto senso prático. Basta que se diga a esta Casa o seguinte: nosso amado governador sobrevoou as várzeas durante meia hora. Só por isso mereceria unânime e agradecida moção de congratulações por sua reconhecida clarividência administrativa.

Sem pedir licença, esgoela-se Trancoso:

– Vossa Excelência e vis comparsas estiveram no Baixo Amazonas fazendo turismo às custas da miséria popular, enquanto a vaidade única de minha vida é ser filho daquela esquecida região. Sou caboclo nascido e criado em Santarém! Respondo, portanto, a esse plano monstruosamente idiota com uma gargalhada e uma banana!

No gesto característico, o parlamentar imita a fruta com os braços e complementa, colérico:

– O nobre líder situacionista não passa mesmo de um desprezível moleque de recados, de um palhaço como o são todas essas vaquinhas de presépio que endossam qualquer imbecilidade. Realmente, há homens que conduzem no cérebro o que deveriam esconder nos intestinos!

As galerias aplaudem ruidosamente o aparteante. Antes, porém, de retomar a palavra, o presidente da sessão adverte a assanhada platéia: não vai tolerar qualquer outra manifestação. Apoplético, troveja Salvador:

– Não se insulta impunemente um homem de bem e muito menos quando o vômito verbal se generaliza, atingindo outros cidadãos incorruptíveis e parte de um cachorro como Vossa Excelência!

– Cadela é a distinta mãe do nobre deputado! – responde, erguendo-se e caminhando para a tribuna o decidido oposicionista.

Arcângelo desce, rápido, ameaçando, aos gritos:

– Vou quebrar a cara sem-vergonha de Vossa Excelência, cretino, crápula, canalha!

Instala-se o tumulto. As duas bancadas trocam desaforos, como se nunca houvessem tomado conhecimento de algo que os próprios representantes das multidões chamam decoro parlamentar. A equipe de segurança intervém, separa os valentões. Furioso, o presidente esbofeteia os dois tímpanos, exigindo silêncio, e comunica: – Está suspensa a sessão até que o sacrossanto decoro parlamentar retorne ao seio augusto desta conspurcada Casa do Povo!

Os moderadores vão acalmando os dois fumejantes candidatos a pugilistas e até conseguem, nuns cinco minutos de judicioso “deixa disso”, que Salvador e Setembrino concordam, para assombro da platéia, em trocar um apertado abraço de paz... As galerias explodem numa ululante vaia e são imediatamente evacuadas pelos homens da segurança, acatando ordens da presidência.

O deputado Esperidião Santa Rosa, veterano legislador, pondera, tomando um cafezinho:

– O entusiasmo dos civilizados debates parlamentares é, em verdade, o mais enobrecedor apanágio das democracias autênticas, transbordantes de vitalidade. A efervescência efêmera dos espíritos, no entrechoque sublime das idéias díspares, é indício de vida e criatividade. Tudo isso dignifica o parlamentar.

Nada mais disse, nem lhe foi perguntado. Reposta a serenidade no ambiente austero, Arcângelo sobe outra vez à tribuna. Mas anuncia de saída:

– Como é de crucial relevância para os destinos do povo o que ainda me cumpre relatar a Vossa Excelências, senhor presidente e senhores deputados, e o tempo urge, participo à nobre e patriótica bancada oposicionista que não concederei apartes.

Protestos. Tímpanos acionados. Silêncio no Plenário.

O orador passa a desfiar um cansativo monólogo, especificando a quantidade colossal de vacinas e pílulas que o governo enviará aos ribeirinhos. Discorre sobre o “curriculum vitae” do novo Secretário Estadual de Saúde e presta outras atraentes informações. Tem o cuidado de não dizer mais nenhuma palavra sobre o fantástico remanejamento de quarenta mil caboclos em uma semana. Tão comunicativo é o orador que, ao terminar sua saborosa explanação, só os leais correligionários permanecem, a bocejar, em suas poltronas. Dois deles perderam a cerimônia e dormem, placidamente, de cabeça esparramada no peito. A oposição escafedeu-se. Isso tudo não impede que, findo o discurso, a miúda platéia aplauda o denodado líder: – Muito bem! Apoiado! Viva o Brasil!

E o abraçam efusivamente ao descer da tribuna, onde fez um trabalho tão cintilante. Seja como for, os jornais dispõem de novos petiscos para amanhã: engalfinhamento frustrado na Assembléia... fotos de parlamentares roncando e... enchente!

No ônibus, um popular desdentado olha o jornal, vê as manchetes da véspera e diz ao companheiro de banco: – Essa pitomba de enchente já tá enchendo o saco. Deviam ter deixado esses deputados quebrar a cara um do outro.

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