sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulos 25 e 26 (final)


Capítulo 25
  A VAZANTE –
O Amazonas está ridicularizando todas as crendices, tradições e esperanças dos varzeiros neste inacreditável 1971. Já se chegou ao dia de Santo Antônio, 13 de junho, e o rio ainda continua fazendo misérias. Além de não ter vazado, prossegue subindo, como se o Governador dos Mundos houvesse permitido uma punitiva e catastrófica subversão de leis que criou para serem respeitadas. A anormalidade, sem precedentes conhecidos, leva o filósofo Zé Potoca a emitir parecer:

– Égua, meu padrinho! Nem Santo Antônio, amigão dos caboco, deu jeito no corno desse Amazona, que nunca tinha enchido no dia dele. Paresque Deus enturtou muito a cuia esse ano e não tá com pressa de endireitar a bichona. Vute!...

– Nunca a gente vimo uma marvadeza dessa – admite Presidente. Os tempo tá mudado. Ariramba cantou pra se danar, a Lua só véve virada pro lado das terra e o diabo do rio nem dá bola pra nada disso, que sempre foi sinar certo de vazante.

Um dos axiomas da várzea é este: o pior de qualquer enchente será sempre uma demorada vazante. Quando o declínio do rio se processa com desesperadora lentidão, aos centímetros, tudo o que não presta e ainda não havia aparecido acaba dando um ar de sua graça ou um vento maldito de sua desgraça: epidemias, falta quase total de alimentos, bois sobreviventes caindo, fracos, e morrendo aos lotes.

Mas a esperança, embora pequenina e impotente como brasa de cigarro em noite borrascosa, jamais deserta dos corações supliciados. Encarapitando-se nas marombas erguidas várias vezes, os caboclos sempre nutrem o sonho de que já no dia seguinte as águas comecem a descer. E só abandonam mesmo os tapiris quando não lhes é possível levantar sequer mais um palmo de assoalho, porque ele ficará praticamente unido à cobertura. Talvez Euclides da Cunha sentenciasse que o varzeiro é, antes de tudo, um otimista ou um teimoso, pois não há diferença acentuada entre os dois estados d’alma.

Ainda assim, milhares desses esfarrapados filhos de Deus são, de repente, constrangidos a largar tudo, com uma trouxa ou um panacu às costas. Vão buscar abrigo nas terras altas ou, em última instância, na cidade hostil que nada lhes pode oferecer além de compadecidos olhares e discursos bombásticos nas cúpulas deliberantes. É, esse, um êxodo talvez mais doloroso do que o provocado pelas guerras fratricidas: nestas, os homens fogem com um medo imenso das brutalidades dos seus semelhantes, enquanto nas enchentes assassinas os frangalhos humanos – verdadeiros bichos que conduzem uma alma imortal! – correm, espavoridos, sem pão, sem lar, sem fé, sem saúde, amaldiçoando o rio e os deuses sem coração. Mas o varzeiro acaba sendo, curiosamente, uma perfeita imagem da folclórica e masoquista “mulher de malandro”: quanto mais apanha e é expulso de casa, menos desejo tem de abandonar o cruel companheiro. Afinal, selvagem como for, ele sempre lhe fornece o sustento e, por isso, a pisoteada vítima do cafajeste geralmente volta para mais uma reconciliação, embora houvesse partido a fumegar de ódio...

Na “Fazenda Apuizeiro” – como em todas as demais – tudo é desolação, doença, desconforto. Os políticos, naturalmente, não cumpriram a promessa da madeira para a maromba... Todos estão fortemente gripados, a gemer, com febre e frio, no fundo de redes malcheirosas. Duas das crianças ainda receberam um diabólico acréscimo às suas espantosas agonias: uma desgraçada e horrível “tosse da guariba” provoca-lhes asfixiantes acessos em que os olhos se esbugalham e a mãe chora, sem saber como acudi-las. Coqueluche, sarampo, catapora, tifo e gripe, além de outros simpáticos integrantes de um alegre cortejo de pragas, andam varrendo o Baixo Amazonas. O “estranho mal” a que a emissora radiofônica de Santarém fizera referências, e que estaria dizimando reses em outras áreas, já fulminou quase todo o plantel de Antônio Presidente. Escaparam apenas seis animais, porque, para não os perder, o dono decidiu conduzi-los à terra firme. A medida, no entanto, não impediu que ele recebesse um recadinho: – O seu Nenen Tangará mandou dizer pro senhor, seu Presidente, que um boi morreu, onte, de erva venenosa. Nós achemo ele já meio podre e joguemo no rio – informa o emissário.

Como terá de entregar ao proprietário do campo de invernada um dos animais para pagar o aluguel, o marido de Dona Maria Flor ficará somente com quatro unidades. Isto, se não vierem mais surpresas até a vazante.

Há um estimulante açodamento nos gabinetes refrigerados onde se decidem os destinos das multidões. Todos os inquietos prefeitos da vastíssima área flagelada pela descomunal inundação acabam de decretar, ante contratados fotógrafos, “estado de calamidade pública” em seus respectivos municípios. Isso lhes dará direito ao recebimento de gordas verbas, a fundo perdido. Ontem, o governador sobrevoou – pela segunda vez, neste ano – a região submersa. Contam os jornais da oposição, a propósito da caridosa providência oficial, uma historinha que o partido majoritário desmente, indignado.

Em certo instante do passeio aéreo, olhando através da janela de vidro, o governador apontou alguma coisa lá embaixo e fez a pergunta:

– Mas por que esses caboclos cabeçudos teimam em fincar pé nas casas afundadas e não se mudam para aquela praia logo ali, tão grande e enxuta?

Respeitosamente, um dos assessores, gaguejando um pouco, esclareceu: – Não... Não é praia propriamente, Excelência. São as águas barrentas do Amazonas que, à luz do Sol e da altura em que voamos, causam essa ilusória, embora muito válida, impressão.

Pronunciamentos inflamadíssimos denunciam a ânsia desavergonhada de se capitalizar, eleitoralmente, a penúria comunitária. De concreto, entretanto, quase nada se fez, afora a remessa de vacinas contra tifo. Deitando falação à imprensa, em Belém, um dos gestores interioranos ensina, de cátedra:

– Como filho do Baixo Amazonas e administrador de um dos mais prósperos municípios daquela circunscrição geográfica, sei que nada, mas nada mesmo podemos fazer numa emergência de tal magnitude. São incontroláveis fenômenos naturais, onde se manifesta, clara, a santa e soberana vontade de Deus. Basta que se reze, pois, afinal, é um sofrimento provisório de todos os anos e logo mais retornará a fartura de verão.

Na mesma edição que agasalha o douto pronunciamento do esclarecido prefeito, há outra preciosidade. Apesar de não decifrarem o mistério do mal que vem dizimando os rebanhos, técnicos de renome esbanjam erudição científica ante boquiabertos repórteres. Pontifica um deles:

– A raríssima epizootia ainda não está sob controle, uma vez que seu diagnóstico permanece ignorado, resistindo a todos os nossos testes sofisticadíssimos. Mas, a presumir pela sintomatologia, já se vislumbram animadores indícios de que estamos em confronto com uma excepcional virose atípica. Mais cedo até do que imagina, isolaremos seu agente etiológico, cuja propagação parece estar a cargo de um vetor alado, talvez o próprio “Culex fatigans”.

Entre essas e outras iguais boçalidades, junho vai terminando. À força de muito chá de limão com alho, a turma de Presidente recupera-se da gripe, embora persista a coqueluche ou “tosse de guariba” que, às vezes, se arrasta por quase meio ano. Combalidos, pálidos, todos já estão de pé e adquirem novo alento quando o dono da casa faz a primeira verificação da manhã e anuncia, com um largo sorriso: – A água vazou cinco dedo! Paresque agora vai.

– Com o empurrão da Mãezinha do Céu! – completa Maria Flor. Esse ano nós vai fazer uma ladainha discunforme de bunita!

É, de fato, o início da esperadíssima vazante, que representa uma ameaçadora faca de dois gumes, apesar das alegrias que dispara: enquanto revitaliza apunhalados corações, faz desabarem outros medos, novos riscos sobre as almas de infelizes que tanto, tanto já amaldiçoaram a enchente.

Na proporção em que os campos se descobrem e reaparecem os “tesos” – porções enxutas em meio aos alagados – os fazendeiros vão descendo das marombas os esqueléticos animais que sobraram, soltando-os nos atoleiros para aproveitarem algum alimento que já pode ser encontrado. Raquíticos e famintos, os bois lançam-se a uma ávida busca de pasto e devoram tudo o que lhes parece comestível. Em tais circunstâncias, é muito comum ingerirem ervas venenosas, além das possibilidades, sempre temíveis, de outras desgraças. Podem apanhar frieiras ou ser, de repente, engolidos pela fatal “lama gulosa” – extensões de tabatinga espessa e pastosa, onde afundam homens e bichos. O rio vaza, sim, mas cobra o seu preço infernal, como um bandido capaz de matar um casal e, antes de fugir pela janela, ainda se diverte pondo fogo no quarto das crianças.

De qualquer modo, o estado coletivo de espírito é muito menos deprimente do que nos sombrios dias de novembro, porque, chegado o repiquete, os ribeirinhos sabem que seis meses de incríveis provações os aguardam. Agora, ao contrário, cada hora que passa deixa-os mais perto do tempo bom, numa estimulante contagem regressiva até ao novo encontro com a felicidade perfeita – sol, pirapitingas, acaris, queijos, piracaias, festas, abundância de tudo!

Alegre, Maria Flor profetiza, provando o caldo cheiroso: – nunca mais a gente vamo pelejar com uma enchente amardiçoada como essa! Deus tá tirando a cangalha do lombo dos caboco!

Os céticos e cínicos diriam que Deus ficou bom do fígado e vai recuperando o bom humor.

Capítulo 26
  A VIDA CONTINUA... –
O rio vaza e vaza bem. Já se observam, na várzea inteira, os característicos e animadores sinais do verão que chega, tão bem-vindo como filho seqüestrado que acaba de ser solto. São evidências que inundam de encorajador entusiasmo quantos dependem vitalmente das condições do tempo, não apenas por interesses econômicos, mas para a própria sobrevivência no ambiente adverso.

O buliçoso e assoviante vento geral é, a essa altura, uma presença abençoada e alegre nas fazendas. Ele passa os dias claros brincando de cavalgar os galhos, de pôr as folhas em adoidadas danças. E sacode as fruteiras como os moleques peraltas que desejam desabarem os apetitosos cajus, mangas e goiabas. As refrescantes ventanias de agosto têm o poder mágico de arejar também os corações: os risonhos varzeiros exultam ao sentir que, apesar de todos os pesares, não há nada equivalente ao contentamento de se estar vivo e com saúde.

Bandos de marrecas ariscas, ananaís e patos selvagens, após desconfiados sobrevôos exploratórios, vão pousando pelas redondezas. Até um tracajá afobado, que desovou antes do tempo, Zé Potoca já trouxe para casa. Esperanças, e mesmo certezas, brotam, afinal, em almas arrasadas por tantas batalhas perdidas.

Essa prodigiosa renovação interior dos ribeirinhos apresenta estranha afinidade com um rotineiro procedimento estival, tão ligado às suas vidas: a queimada. Da mesma forma como as matérias orgânicas das árvores torradas pelos incêndios de novembro aumentam a fertilidade do solo na primeira semeadura, as lágrimas vertidas nos duros tempos da inundação parecem funcionar, por uma condescendência dos céus, como um poderoso adubo nos corações dos corajosos caboclos – heróis anônimos de tão inglórias epopéias.

O rio continua vazando, e vaza bem. A fartura volta devagarzinho, chegando encabulada, como quem não dispõe de um bom motivo para se desculpar por tanta demora. Antônio já encomendou até um reprodutor e duas vacas bonitas. Dará o batelão como pagamento. Mais tarde arrumará outro, pois as coisas vão melhorar.

A tarde vai findando, na colorida agonia das luminosas jornadas amazônicas de agosto. De cotovelos apoiados no parapeito do alpendre, Maria Flor e o marido olham as quatro reses que, abanando o rabo, espantam os primeiros carapanãs ali no curral meio enlameado. A temporada que passaram nos campos da terra firme lhes fez muito bem: os animais estão em satisfatórias condições físicas.

Fitando uma tronqueira que desce, na correnteza, com alguns mergulhões servindo-se da gratuita jangada para um passeio crepuscular, Presidente fala quase para si mesmo: – Se Deus quiser, nós se ajeita de novo esse ano. O roçado apodreceu, mas eu vou fazer outra queimada.

Atravessando o braço em torno das costas nuas do esposo, a mulher concorda, animada:

– As coisa vai mudar! A Fuluca, do Chico Zebu, me disse que eles perderam tudinho – o gado, os três filhos e a barraca. Tão na misera, morando com uma tia lá no Marimarituba.

Alisa a cabeleira do querido companheiro e o encoraja:

– Não se avexe não, meu bem. Nós sabe que varjero tem que ter tutano pra começar tudo de nuvo, quando é perciso. Nós inda fomo até muito feliz porque só perdemo três curumim, fiquemo com os outro três, a casinha, o barco e quatro bui bunito. A gente inda levantamo a cabeça e vamo ficar mais melhor do que nós tava!

Junta, de repente, as mãos em prece e, com os olhos brilhantes, postos no céu, fornece a infalível garantia:

– Eu tenho uma baita fé na Mãezinha do Céu! Ela vai ajudar nós!

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