sexta-feira, 13 de junho de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 15


– O PEIXE-BOI  –
É sempre assim. Quando um perigo – seja bicho feroz, fogo, doença ou bala – nos amedronta e fere a alma, fica, durante algum tempo ou definitivamente, dependendo da coragem com que cada qual enfrenta a vida, fica um um complexo, um medo no pensamento e no coração torturado. Teme-se que a dose brutal de lágrimas se repita, pois dizem que as desgraças costumam chegar aos pares.

Na “Fazenda Apuizeiro”, após o enterro de Toninho, a relativa serenidade interior das pessoas andou muito abalada com a “neurose da cobra”. Receava-se que o par da sucuriju assassina estivesse a rondar por perto, em busca da companheira ou de alimento. Daí as cautelas, as advertências, os sustos ante qualquer coisa que parecesses com a infernal serpente. No entanto, ao correrem os dias com sua carga massacrante de tarefas e preocupações de outra espécie, a psicose foi diminuindo até que se extinguiu.

Zé Potoca vai descendo para desamarrar o batelão do capim. Ainda está escuro, pois são apenas quatro horas da madrugada. Ao conseguir entrar no barco, ele tem de conter uma espantada e alegre exclamação, que sai em voz baixa de seus lábios grossos: – Oba!... Muito pai-d’égua!... Hoje a gente não vamo dar murro no varejão!

Eis a razão da repentina euforia que lhe enche a alma de luz, antes mesmo de brilhar o clarão da aurora: acaba de enxergar, ali pertinho, um imenso matupá – ilhota de canarana e outros vegetais comestíveis – que encalhou na margem com a ventania da noite. Retida pela maromba, aí está ela, numa imprevista colher de chá atirada pela Mãezinha do Céu. Subindo no estrado, o vaqueiro examina bem a avantajada bolota de pasto e conclui, satisfeito, que os bois terão alimento para quase três dias, desde que se divida o presentão com engenho e arte. Antônio Presidente aparece, já pronto para viajar, e é recebido com espalhafato: – Eita, meu padrinho! Muito pai-d’égua! A gente hoje tamo por cima! Venha ver essa bacanagem: tem capim que nem ladrão acaba!

Presidente olha a forragem que chegou, de bubuia, na correnteza do Amazonas, e diz, algo preocupado: – Graças a Deus. Mas eu vou já chamar a Maria e os dois curumim maior pra ajudar nós. A gente tem que se avexar porque o rio tá correndo como o diabo gosta e essa porqueira fica aí forcejando em cima da maromba. Vumbora se virar, caboco!

Tão intensa é a atividade conjunta da família que, às sete da manhã, todo o capim foi retirado da ilhota. Potoca ainda teve que matar uma surucucu-pico-de-jaca. Por um triz ela não lhe acertou a picada, fatal se não houver socorro imediato. Depois de concluído o serviço, num violento esforço final, a turma desprende dos esteios da maromba a massa careca. Muito lentamente, lá se vai o bagaço, à deriva, no rumo de baixo...

Terminada a labuta não programada, o dono da fazenda lembra-se de uma notícia que lhe haviam dado e propõe ao companheiro: – Zé, o Totó Pica-pau me disse que anda boiando uns peixe-boi lá naquela restinga do Sovaco da Velha. Nós tamo meio forgado hoje. Vamo ver se a gente estragamo um corno desse? – Vumbora, meu padrinho! – aquiesce, entusiasmado, o leal caboclo. Já faz bem uns três ano que nós não matamo um peixe-boi.

Maria Flor intervém, complascente: – Vão mesmo se divertir um bucadinho. Vocês tenham sufrido mais do que cangote de estivador. A Mãezinha do Céu havera de abençoar essa pescaria, pois huje a santinha acurdô inda mais camarada. Mandou o rio despejar até capim na nossa porta. – Papai, deixe eu ir com o senhô! – pede Raimundinho, que, agora é o mais velho.

– Não, meu filho. Tu tem que ajudar tua mãe – responde-lhe o pai, arrumando coisas para a viagem.

– Que nada, Antônio! Leva o menino. Deixa que eu me ajeito com os outros – sentencia a esposa, com autoridade.

– Pois vumbora, moleque! – concorda Presidente. Mas o peixe é velhaco que nem rato. Se tu atrapalhar nós, eu te meto peia. Veste uma camisa, põe o chapéu e vumbora.

Sai o barco “Flô das onda II”, que deverá navegar durante hora e meia para que se chegue ao local pretendido. Olhando a desolação da paisagem que vai surgindo ao longo do caminho, com as casas quase totalmente no fundo, o crioulo fala alto, para superar o ruído da máquina: – Meu padrinho! – Que é?! – Quando nós parar eu quero lhe dizer uma coisa! – limita-se a prevenir Zé Potoca, que de vez em quando tem uns rompantes idiotas.

Chegando o bote às proximidades do lugar procurado, o fazendeiro desliga o motor. Eles devem prosseguir, agora, a varejão, tanto por motivo do capinzal espesso, como para não afugentar os ariscos peixes que desejam arpoar. Cessada a barulheira da máquina, pergunta Presidente: – Que diabo então tu quer comigo, rapaz? – Não é nada, não, padrinho. Eu ouvi dizer que quando a água tufa muito aqui na varja, ela seca num tar de Ceará e outros país. Então eu fico mardando assim: puxa vida, Deus até que faz as coisa bem pai-d’’egua!

Pega a cuia do porão e vai movimentando a vasilha conforme as palavras que pronuncia: – A terra é paresque uma baita cuia, uma cuiona do tamanho do céu. Então, quando Deus entorta ela pra este lado, enche aqui e fica seco lá. Se Ele emborca ela ao contrário, enche no Brasir e vaza aqui. Não é? – Sei lá, homem! – retruca Antônio, fazendo força na vara. Tu sai com cada arrumação insquisita! Eu nunca estudei essa tar de Ingronomia pra conhecer essas porquera direito. Mas vamo calar logo a buca, senão a gente não pegamo nem baiacu! – encerra, ríspido, o padrinho, que nunca teve grande paciência nesses momentos de original loquacidade do benquisto xerimbabo.

Antes de iniciar a tocaia, Presidente instrui muito bem o filho calouro: o peixe-boi tem o ouvido altamente sensível e, por isso, qualquer barulhinho, quando ele vem à tona, espanta o animal. Nem fósforo risca-se na canoa.

Agasalhados num esconderijo que lhes parece bom, todos ficam quietos e silenciosos. O esposo de Maria Flor segura o arpão firmemente preso a uma longa vara de pau-d’arco, ligada a um resistente cordel plástico de cem metros de comprimento.

Não transcorreu ainda meia hora de espera, quando o que eles chamam de “bezerro” – o filhotão do peixe-boi – emerge, perto. Com a máxima cautela, Presidente ergue o braço para lançar o ferro, mas nesse crucial instante o impossível acontece: – Atchim!... – espirra, com estardalhaço, Raimundinho!

– Seu cachurro do cão! – explode, furioso, o pai, aplicando-lhe dois cascudos. Tu fez o peixe fugir, moleque sem-vergonha! Mardita hora em que eu arresorvi trazer essa peste! Vá ser panema assim na baixa da égua! Vute!

– Eu não agüentei mais, papai! – explica, a chorar, o desastrado menino. Já fazia um bocado que meu nariz tava coçando. – Cala já essa buca suja, curumim perebento, senão eu te bando a cabeça com essa vara!

Ficam quietos, de novo. Em períodos mais ou menos regulares, o estranho peixe sobe para respirar e comer o capim da superfície. Todavia, se toma um susto, pode ir embora e não voltar mais, indo reaparecer num local muito distante.

A paciente vigília já se prolonga por duas horas, quando, sem dizer nada, Antônio leva o dedo indicador aos lábios, num gesto em que exige completa imobilidade. Algumas bolhas espumantes anunciam a presença iminente da cobiçada embiara. Primeiro, surge um focinho avermelhado e, depois, uma parte do cinzento dorso. De pé, o caboclo solta vigorosamente o arpão que penetra, fundo, no lombo do animal. Agora, podem falar e espirrar à vontade, porque a bóia está segura...

No desespero da dor, o bichão dispara pelo capinzal, arrastando consigo todo o peso do barco e de seus três ocupantes. Firme, no banco da proa, o experiente pescador segura a corda. Não sendo muito grande, logo o fujão há de se deter, extenuado.

Cinco minutos depois, emaranhando-se numa galharia do igapó, o peixe pára, exausto, mas ainda sacudindo raivosamente o rabo em forma de pá. Com todo o cuidado, Antônio enfia uma cunha de madeira roliça numa das narinas do boi aquático, fazendo-o agitar-se com ligeira e ainda perigosa violência. Tenta, inclusive, arrancar o tarugo que lhe meteram na venta, acionando a insólita nadadeira lateral que possui na parte anterior do ventre. Entretanto, ao receber o segundo rolo na outra narina, ele é convulsionado pelos derradeiros espasmos agônicos e... está morto. Agora, bóia, de barriga para cima.

É com muito trabalho que a trinca de varzeiros consegue embarcar a grotesca figura biológica, apesar de serem relativamente modestas as suas dimensões: deve pesar uns cento e vinte quilos, quando até de duzentos ou mais se pode apanhá-los. Trata-se de um peixe com hábitos singulares, desde que vive na água, alimenta-se de capim e “fisionomicamente” faz lembrar um boi. Apresenta cinco dedos sob o couro de duas patas-nadadeiras e, com o corpo redondo, aerodinâmico, dá a impressão de uma descomunal e acinzentada melancia.

O Sol já vai assinalando quatro horas da tarde no momento em que o “Flô das onda II” zarpa de volta à fazenda. A bóia anda tão escassa em toda a várzea que, durante dias seguidos, só conseguem os caboclos enganar o estômago com os mandis e piranhas fisgados pelos meninos, que jogam o anzol da varanda ou da cozinha. O grosso dos cardumes está embrenhado nos igapós, engordando para as piracaias do verão. Alegre com o êxito da pescaria, Presidente grita, rindo, para Raimundinho, o autor da inédita façanha espirratória: – Mas tu é um bestão mesmo, meu filho! Então quando eu ia arpoando o bichão, tu sortou um disconforme dum espirro que butô até arma penada pra correr? – Gargalha, sacudindo-se, e acrescenta: – É muita uruca prum curumim desse tamanho! Tua mãe percisa rezar pra ver se tu fica menos panema. Vute!

E os três riem muito, acariciando, vez por outra, o falecido e imenso peixe-boi...

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