sexta-feira, 23 de maio de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 12


– MAROMBA DE GENTE –
A “Rádio Rural” de Santarém, oráculo do Baixo Amazonas, vai envenenando o éter e as almas com as mais alarmantes notícias sobre a enchente de 1971. Na “Fazenda Apuizeiro”, todavia, já se resolveu ligar o rádio apenas em certas horas, principalmente quando há programas de mensagens para o interior, pois sempre é possível aparecer algum recado importante para a família. De fato, o receptor, acionado a pilhas, despeja, durante o dia, coisinhas estimulantes assim: – Temem as autoridades que a inundação deste ano supere a de 1953! – Ou isto: – Terríveis cardumes de piranhas devastam o gado na região do Aritapera!

– Tisconjuro! – amaldiçoa Maria Flor, benzendo-se. Esses cão que fala aí só dá recado mardoso. – Desliga, zangada, o agourento aparelho e completa: – Esses menino devia é dizer que o tar de prefeito abaixou decreto mandando o Amazona vazar logo e não ficar contando desgraceira pra gente.

O rio!... Todos se põem de joelhos ante o ditador sem entranhas, cuja brincadeira predileta consiste em infernizar, até intoleráveis limites, as vidas obscuras de tantos milhares de pessoas, que sofrem monstruosas punições pelo crime imperdoável de morarem nas várzeas.

O rio!... Se maltratasse apenas os bichos e as plantas, ninguém se queixaria tanto. Mas os padecimentos maiores, porque conscientes, estão reservados, por boçal ironia e requintes de sadismo, aos seres humanos e, sobretudo, àqueles que menos sabem, podem e devem sofrer: as crianças.

O rio!... Insulta e mata quando sobe... Ofende e assassina ao vazar... Enchendo, destrói pastagens, desaloja famílias, dizima rebanhos. Diminuindo de volume, deixa aos ribeirinhos, como diabólica herança, um rastro de epidemias que completam a devastação inacabada, terminando de aniquilar os frangalhos pensantes e os animais que se atreveram a sobreviver.

O rio!... Ah! O rio!... De tantos desesperos, de tamanhos ódios entope os corações, que provoca estranhos desabafos como o do velho Gigi Cebola que, urinando dentro d’água após mais um prejuízo, trovejou, de punhos crispados, no gesto inútil da raiva potente: – Ah! Seu bandidão covarde! Se pau-de-fugu desse jeito em ti, as coisa não ia ficar assim!

Mas o rio, embora não fale, possui os seus autorizados, competentes e cínicos porta-vozes. Quando o caboclo fechou a boca de dois dentes podres e únicos, a cinco metros de si boiaram três botos, soltando, juntos, a vaia zombeteira e humilhante: – Uaaá!...

Hoje, após um esplêndido dia estival em pleno inverno, vem surgindo, triunfalmente, a Lua cheia de abril. Numa tradição que se confirma em todos os anos, esta é a fase temida de modo especial porque as águas crescem com mais rapidez e violência, decidindo, em geral, as proporções finais da enchente.

Depois de alimentar as reses e remover um garrote que morrera pisoteado pelos demais, Antônio dá uma volta em torno da casa e, detendo a montaria, conserva-se calado, mão no queixo, a refletir sobre a séria situação. Rema novamente, entre em casa, sacode o chapéu molhado e previne a esposa: – Amanhã a gente já percisa fazer a primeira maromba aqui dentro de casa. Tá fartando uma só uma cuisinha pra água lamber o sualho por baixo. Nesses dois dias ela tufou quase dois parmo. – Vumbora – concorda Maria Flor. Tu quase me tirou a palavra da buca. Quando dá banzeiro, já ensopa tudinho aqui.

Presidente descasca uma banana e resume os planos: – Nós inda temo uma porção de maçaranduba que sobrou da maromba dos boi. Vai dar pra alevantar o estrado. Eu vou cumbinar com o Zé. – Come a fruta e vai conversar com o afilhado, lá na quitanda. Há, sobretudo, o problema crucial do corte de capim: o preto irá sozinho, no barco “Flô das onda II”. Saindo muito cedo, poderá fazer duas viagens, enquanto o fazendeiro trabalhará duramente para erguer o piso da residência.

Tudo acertado, Antônio embarca outra vez na canoa para tomar o seu banho de cuia, quando, de repente, se lembra: – Mas me diz uma coisa, Zé. Naquela hora em que o lacrau te sapecou a ferrada, tu tava me falando num tar do teu casamento, não foi? Que diabo é isso?

Risonho e meio encabulado, retruca o vaqueiro: – É, meu padrinho. Eu tô noivo com a Mundinha, aquela filha do seu Mário Catinga-de-mulata. Nós tamo mardando de se casar no verão que vem.

Sem rir, indaga o pai de criação: – Mas cumo é que tu pode tá nuivo sem namurar, rapaz? – Eu tô nuivinho da sirva, sim, senhô – confirma o galã. Quando ela veio aqui, no dia da ladainha, eu dancei dois baião esquentado com ela e disse: “Mundinha, eu quero casar cuntigo. Tu topa?” – Aí ela me ulhou bem de pertinho, virou os zóio e respondeu: “Eu topo. Faz uma semana que eu aresorvi meter o chifre no Pedro, filho da Raimunda Goiaba. Troquei ele pelo Cazuzinha, do seu Malaquia Pé Grande, mas huje nós briguemo. Fala com o papai, que nós se casa, pois eu já tô enjuada de ser mulher surteira.”

Reprimindo a muito custo a gargalhada, fala Antônio, ensaboando-se: – Toma juízo, menino! Se a Maria Flor tivesse ouvindo essas bestera, tu ia já engolir desaforo. – Joga uma cuia com água em cima da cabeça e acrescenta: – Tu não tá vendo que isso é duidice de maluco? Pra tu te casar, é perciso juntar um dinheirinho e fazer a tua barraca. E quando tu for mesmo te amarrar, não te junta com uma galinha sem-vergonha daquela, que só não namora imbuá porque não sabe quar deles é o macho.

Ouvindo, atento e sério, Potoca admite, cabisbaixo: – O senhô tá certo. Eu não tinha maginado essas coisa. Nós ia se casar no dia da outra ladainha e eu queria ficar murando ali mesmo no barracão. – Finalmente, decide: – Mas agora, quando eu for lá no forró da Raimunda Goiaba, eu vou dizer pra Mundinha percurar outro marido. Tadinha! Ela tá me esperando.

– Te esperando coisa arguma, abestado! Aquela vagabunda já te chifrou umas dez vez da ladainha pra cá. Anda logo com esse teu banho e vumbora jantar pra dormir, que amanhã tem faxina braba – finaliza Presidente.

No outro dia as atividades são repartidas, como se combinara: enquanto o negro sai no barco, Antônio começa, penosamente, a levantar o assoalho. Resolve erguê-lo em sessenta centímetros, altura que lhe parece suficiente, pelo menos por enquanto. Inicia o trabalho pelos quartos de dormir, pois levará, no mínimo, três a quatro dias para concluí-lo. Na cozinha ou na sala, eles podem caminhar dentro d’água, mas não nos dormitórios, porque o infeliz que acorda e pisa no molhado, “istupora”.

Ao anoitecer, a maromba de gente está mais ou menos adiantada, principalmente porque as tábuas são largas. Mas, voltando da labuta, Zé Potoca informa, alarmado e alarmando: – Puxa vida, meu padrinho! A Lua cheia tá de cum furça! O rio tufou mais um parmo e uma fagulha. Vute!

Antônio já tinha visto o acréscimo amedrontador. E é por isso que resolve prosseguir trabalhando, noite adentro, à luz fraquinha do candeeiro. Nesse momento já estão com cinco centímetros do Amazonas dentro de casa! O crioulo quer ajudar, porém Presidente manda que ele se recolha cedo, porque é visível o seu esgotamento.

Maria Flor e o filho mais velho auxiliam como podem. Aí pelas duas da madrugada, quando vão repousar um pouco, ainda escutam as vigorosas batidas de martelo que alguém dá, ao longe, também fazendo maromba de gente, e que soam como bofetões na cara amarela da noite de luar. Supersticiosa, a cabocla, quase cochilando, arma uma figa nos dedos e comenta: – Vute! Credo em cruz! Mar comparando, essas pancada assim fora de hora parece carpinteiro fazendo caixão de defunto. Tisconjuro!

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