sexta-feira, 2 de maio de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 9


– O PIÃO –
Cinqüenta reses – quase a metade do rebanho da “Fazenda Apuizeiro” – já se comprimem nas dependências do “Machão do Tapajós”. Numa só viagem, o comprido barco fará a remoção de todo o gado a ser transferido para a terra firme. O ideal, evidentemente, seria a passagem da manada inteira, mas, querendo reduzir as despesas com o aluguel do campo, Antônio Presidente prefere manter uma parte em cima da maromba.

É meio-dia quando a potente máquina de sessenta cavalos põe em movimento a embarcação de Chico Tenório. Presidente e Zé Potoca acompanharão a boiada. Como os pastos de Nenen Tangará ficam a duas horas de viagem, após comerem jatuarana moqueada com farinha, os exaustos caboclos estendem-se no assoalho da roda de popa. Tirarão uma revigorante soneca enquanto o experiente comandante Simão irá conduzindo o casco de itaúba pelos meandros que tão bem conhece.

Sem incidentes, às duas da tarde o barco está manobrando para encostar na Ponta do Mucuim, a quase um quilômetro dos campos de inverno. O trabalho, agora, consistirá em fazer os bois saltarem sobre a baixa amurada do barco para, em seguida, dirigi-los através dos trinta metros do Igarapé da Pitanga, que os animais atravessarão nadando. Só a partir daí e após subirem o barranco, estará desimpedido o caminho que leva aos verdejantes capinzais.

Com as cautelas que a vida e, sobretudo, os prejuízos lhe ensinaram, Antônio vai comandando cada detalhe da operação, pois ali está em jogo quase todo o seu patrimônio de pecuarista. Postas para fora todas as reses, inicia-se a marcha do rebanho.

Chega-se ao igarapé, relativamente estreito, mas muito fundo. Na canoa que serve de reboque ao “Machão do Tapajós”, o fazendeiro, auxiliado por Zé Potoca e mais dois rapazes de bordo, procura ordenar os animais, a fim de reduzir o tempo da travessia. E, aos gritos de “Ecu! Ecu!”, a manada entra nas águas frias do córrego. Em tais ocasiões precisa-se ter muito cuidado, pois um simples susto coletivo poderá provocar o estouro do gado em um fatal turbilhão. Até um peixe grande que salte às proximidades representa uma ameaça.

Subidamente, uma vaca muge, alto, lá na frente do grupo que vai nadando. Atrás, na derradeira fila, um bezerro dá imediata resposta e a mãe logo tenta voltar, na contramão, para vir ao encontro do tresmalhado filho. E o temido caos se estabelece, num instante!

Apesar de todas as precauções, uma grave falha ocorrera na disposição do gado para a travessia: um dos mamotes não havia sido colocado junto à sua nutriz. Esta, ao identificá-lo pela “voz”, procurou retornar, desesperadamente. Consumava-se aquilo que os criadores amazônicos tanto receiam nessas oportunidades: o “pião”. Consiste num violento e succionante torvelinho que, de repente, convulsiona as águas, como se fosse “terra caída”. Ao verem um companheiro do lote fazer esforços para regressar à margem, os bois que nadam resolvem agir da mesma forma. Desse confuso rodopio os resultados sempre são nefastos. – Os corno tão fazendo pião, meu padrinho! – berra Zé Potoca, assombrado. Umas dez cabeça já foi pro fundo!

Descontrolando-se e a rezar em voz alta, Antônio não sabe agir e, temerariamente, quer enfiar a canoa no meio do turbilhão. Um dos homens adverte: – Cuidado, seu Presidente! Deixe essas peste levar o diabo, mas não morra, não!

Percebendo a tempo o tamanho de sua imprudência inútil, o caboclo retrocede, com um desabafo que se mistura aos agoniados mugidos: – Meu Deus, mas que besteira eu havera de fazer! Tô tão calejado de passar essas porqueira e acabei deixando a peste dessa vaca longe do mardito filho dela!...

Em poucos minutos, mais uma arrasadora decepção acrescenta-se ao cortejo iniciado na miserável noite da “terra caída”: cessado o pandemônio e feitas as nervosas contas, verifica-se que nada menos de trinta reses morreram afogadas!

Recompondo-se penosamente, o infeliz pecuarista passa a tomar as necessárias providências. Lidera o reembarque dos animais sobreviventes no “Machão do Tapajós” e ajuda a recolher, à proporção em que vão boiando, lá adiante – pois é forte a correnteza – aqueles que morreram. Para aborrecer ainda mais o zangado varzeiro, uma barulhenta chuva começa a cair enquanto eles se desgastam na cansativa batalha para ao menos diminuir o vultoso prejuízo. Quase a sussurrar, o caboclo repete, vezes sem conta, a frase predileta de Maria Flor em ocasiões assim: – Porrada em cima de pobre só presta se for grande... Porrada em cima de pobre só presta se for grande...

Ao escurecer de uma noite que ameaça ser muito fria, apenas onze unidades, foram, a duras penas, postas a bordo, dentre as trinta reses que se afogaram. Enquanto vai auxiliando na sangria e na remoção das visceras, para impedir que a carne se decomponha mais rapidamente, Antônio ordena: – Vumbora, seu comandante! Toca pro rumo de casa! – E o resto, seu Presidente? – pergunta Marreca. A gente temo esbagaçado de tanto pelejar, mas inda dá pra pegar mais uma quatro. – O resto fica aí pro diabo merendar com a mãe dele, as piranha e os urubu! – responde Antônio, com muita raiva. Eu não quero mais nem notícia dessas peste! Vumbora! – E o senhor não vai mais deixar nenhum na terra firme? – insiste o espantado embarcadiço. – Olhando firmemente o interlocutor, o magoado varzeiro revela toda a sua ânsia de encerrar o irritante diálogo: – Eu não vou mais passar praga arguma! Dispôs dessa desgraceira de hoje, resorvi agüentar todo o meu gadinho em cima da maromba, até Deus ter pena da gente e fazer o filho duma égua desse rio vazar! Desamarra essa pitomba e vumbora!

Com a morte na alma, imundo de lama e sangue, o dono da “Fazenda Apuizeiro” prossegue trabalhando, de faca em punho. Ninguém se atreve a tecer qualquer comentário, pois o desastre foi terrível. Todos mantêm aquele silencioso e solitário pudor ante a imensa mágoa alheia, discrição habitual nesses inconsoláveis coices da vida.

Enquanto o “Machão do Tapajós” engole as distâncias e vara os furos barrentos, o ruído de sua máquina ecoa na mataria das margens e se perde no coração da escura floresta. O barulho monótono matraqueia lugubremente, como cantilena sinistra de funeral: – Catraque!... Catraque!... Catraque!...

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