sexta-feira, 25 de abril de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 8


Capítulo VIII
  - A “PASSAGEM” -
Decididamente, toda a rotina tradicional da várzea está sendo virada de pernas para o ar, neste amaldiçoado ano. Também a “passagem” do gado terá de ser providenciada quase dois meses antes do tempo normal. Senhor de baraço e cutelo, déspota que dita os procedimentos da vida individual e coletiva, o rio Amazonas desandou a inchar com tão descarada pressa que os caboclos mal acreditam na espantosa realidade. Não se fala em outra coisa, dia e noite, desde que o destino de cada um está tragicamente amarrado ao amedrontador fenômeno.

Conversando na casa de Antônio Presidente, o velho Duquinha Mocotó, entre dois tragos de cachaça, vai derramando os seus espantos: – Eu tô com essa baita idade de setenta e dois ano e nunca, na minha vida, mardei de ver uma coisa dessa, seus menino. O repiquete deu atrasado e a água tá discunforme desse jeito. Vute! Isso é fim do mundo mesmo! – E a “Rádio Rurar” véve dizendo que daqui pra frente as coisa vão ficando mais pior – revela Dino Pojó. Dizque uns dotô lá do Brasir estudaram que esta enchente vai ser muito grande, porque tamo num tar de ano dicesto. – Tisconjuro! – interrompe-o Maria Flor, benzendo-se. É por isso que a gente ouvimo pouco rádio aqui em casa, pois essa peste só serve pra dar mais consumição pro desinfeliz.

Em épocas normais, só a partir do mês de março, quando os pastos das várzeas começam a ficar alagados, os criadores iniciam, preocupados, a transferência de suas reses para os chamados “campos da terra firme”. Estas áreas, bastante elevadas, têm condições de manter o rebanho, embora em condições algo precárias, dado o acúmulo de animais no mesmo local. Mas não há outra alternativa para se esperar que a vazante permita o retorno da boiada à sua fazenda de origem.

Concluído o corte da juta e postos os feixes em maceração (outro suplício!), para a secagem e o enfardamento posteriores, Antônio transmite à família, na hora do almoço, a importante notícia: – Dispôs de amanhã, cedinho, a gente vamo passar o gado pro campo do seu Nenen Tangará. Já acertei o barco grande do Chico Tenoro.

A decisão significa muito para essas oprimidas criaturas. Poucos são, na Amazônia, os pecuaristas com meios e coragem para se atreverem a preparar pastos de invernada. O dispendioso trabalho de semear capim de boa qualidade e proteger imensas glebas com sólidas cercas de madeira e arame farpado desestimula quase todos os que “mexem com boi”.

Os efeitos seculares e desastrosos de tal situação acabam repetindo-se fielmente: os pequenos criadores alugam os terrenos dos endinheirados, pagando altos preços por cabeça, ao mês. As dívidas são, em geral, amortizadas com o próprio gado, que o “senhor da floresta” vai assinalando com o seu ferro particular. Multipliquem-se os custos de manutenção de cem ou duzentos animais por quatro ou cinco meses, acrescentem-se despesas com fretes de embarcações e se terá uma idéia do tamanho do rombo no já esburacado orçamento dos varzeiros. Isto, quando tudo transcorre dentro dos cálculos, sem os tão habituais imprevistos em que podem ocorrer muitas perdas nos rebanhos – seja por picadas de cobras, consumo de ervas venenosas ou desgraças semelhantes.

É a todo esse festival de aperreios que Duquinha Mocotó, virando a dose “saideira”, faz referências quando garante o que sabe há três gerações: – Meu finado avô já dizia que a enchente pai-d’égua só estrepa mesmo os pequeno criador. Os graúdo fica ainda mais rico porque toma os boi dos pobres a truco de chibé.

Lamentações inúteis à parte, ouvindo a notícia da “passagem”, as crianças exultam, porque gostam demais da animada “operação embarque”. Tão alegres ficam que um dos guris pula, adoidado, quebra um prato e ganha, de brinde, umas boas palmadas da mãe. Zé Potoca não se entusiasma com a situação: – Eu só acho bom embarque de boi quando a gente já vem vortando de vorta da terra firme. Dá muito trabalho. Vute!

Definidas as predileções e antipatias, ao anoitecer do dia seguinte já se encontra no porto da fazenda o barco “Machão do Tapajós”. O comandante Simão Marreca recebe uma banda de tambaqui para jantar com seus tripulantes. Depois, a desferir sopapos em muriçocas que não têm medo de cara feia, os três caboclos do barco escutam por alguns momentos as canções oferecidas aos aniversariantes num programa da Rádio Rural de Santarém”, de grande audiência. Contudo, como começa a chover, eles descem as sanefas de lona e se recolhem às convidativas redes. O tempo está gostoso para dormir, com os pingos d’água batucando no zinco que cobre a embarcação. Além disso, é bom, realmente, descansar, pois amanhã a peleja não será de brincadeira.

Às cinco da madrugada, com um vento gelado fazendo os homens, só de calção, andarem tiritando na lama do curral, principiam as atividades. Essencialmente, a tarefa consiste em laçar a rês, suspendê-la pelos chifres no guindaste manual e deixá-la desabar, esperneando, no porão ou no convés do barco.

Exímio na corda que gira sobre a própria cabeça, Zé Potoca vai pegando cada animal, a começar pelos mais enfezados. Depois, aos pinotes e correrias, o bicho é arrastado até à embarcação, enquanto um outro caboclo, dentro do rio, tenta enfiar-lhe no estrovo a argola da talha. Afinal, todos juntos, puxando ritmadamente uma longa corda, os homens levantam a vítima, até conseguirem arreá-la, com certo cuidado, sobre as estivas de itaúba.

Pitorescas advertências e gracejos oportunos são ouvidos de vez em quando: – Se alembrem que a “Mocoronga” tá barriguda, seus coirão! – grita Maria Flor, ao vê-los brigando com uma vaca enfurecida. Peguem a bichinha com jeito pra ela não perder a criança! – Não brinca, rapaz, que esse corno é imperriado! – previne Antônio, ao ver que o moço chega muito perto de um garrote valente. Não torce o rabo dele assim que tu vai já pegar coice!

Em certo momento, Potoca faz um pedido: – Meu padrinho, pra espantar esse frio que tá tinindo, só uma talagada de cana! O senhor deixa a gente tomar uns goles? – Presidente, que abandonou a bebida há muitos anos, mas conhece bem o meio onde vive, coça o sinal do rosto e concorda: – Tá bom, vai buscar a garrafa. Mas se tu começar a contar história besta e esquecer os boi, eu te enfio o dedo na goela e tu vumita logo o assanhamento. Quer ver, isprementa!

O negro sai correndo, escorrega e cai na lama, porém logo retorna com a bendita “Tenho fé”. Ingere uma reforçada dose e vai oferecer a cachaça aos tripulantes: – Obrigado, diz Marreca. – A gente temo aí no camarote e já tomemo uns tragos.

Olhando para o curral e vendo o padrinho distraído, o crioulo engole, depressa, mais “dois dedos”... em posição vertical. Tufa o peito e proclama: – Agora, sim! Eu sou outro homem! Enxote pra cá esse buizão preto metido a macho que eu derrubo ele no cascudo!

E a lamacenta briga prossegue, sob a chuva que voltou a cair, forte. A várzea inteira está encharcada.

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