sexta-feira, 18 de abril de 2014

MAROMBA - de Emir Bemerguy - Capítulo 7


- A JUTA -
Dezembro ainda vai em meio e toda a Amazônia já anda alarmada com o impetuoso avanço das águas. O rio está subindo a tal ponto que faz lembrar a furiosa afobação de alguém que vence, três a três, os degraus de uma escada porque acaba de saber que, lá em cima, um louco arromba-lhe o apartamento.

Mesmo reconhecidamente equilibrado, Antônio Presidente não consegue esconder a preocupação que lhe rouba o sono, sempre pensando: – A coisa tá mesmo de deixar tudo quanto é caboco desinquieto. – Aponta com o dedo uma determinada árvore e pergunta: – Onde é que já se viu, antes do Natar, a enchente chegar na ilharga desse apuizeiro? Tem ano que só em março ela encosta aí. – Coçando o sinal da face, balança a cabeça, desanimado: – Não tá bom, não. Coisa que preste não vem por aí, Parece até que a peste da terra caída foi só o cumecinho da uruca.

Mais do que um infalível fenômeno cíclico, a enchente é um negativo estado de espírito. Cada ribeirinho fica a esperá-la imaginando os prejuízos que corre o risco de sofrer. O medo individual é dimensionado pelo valor dos bens sujeitos a se perderem durante a ascensão assassina do rio malvado. Todavia, apesar de essa angústia ter o mesmo tamanho das posses materiais do varzeiro, todos padecem, adultos e crianças, a dilacerante expectativa. Mesmo aqueles pescadores que concentram toda a sua riqueza num velho e pobre tapiri não escapam ao sofrimento que a ninguém poupa. É que também esses párias procurarão preservar, a qualquer preço, as migalhas ali agasalhadas. “Onde está o teu tesouro, aí colocas o teu coração” – lembra-nos o Evangelho de Jesus Cristo.

A juta, excelente fibra de procedência asiática, tão bem adaptou-se à ecologia amazônica em pouco tempo, que passou a ser um dos pilares da economia regional. Quando caem as primeiras chuvas, em novembro ou dezembro, as sementes são espalhadas ao longo das margens. Ficam a uma distância que lhes permitirá germinar e crescer até que as plantas atinjam, em março ou abril, o tamanho ideal para o corte.

Neste ano, contudo, as mais cautelosas previsões dos caboclos começam a falhar, tal a desusada rapidez com que o Amazonas aumenta de volume. Pelo rumo que as coisas vão tomando, a ceifa terá de ser feita antes da época habitual, por pequenos que estejam os vegetais, para que não se perca toda a safra. É a respeito desse crucial problema que, logo aos primeiros dias de janeiro, Zé Potoca, retido em casa, pela chuvarada que cai, acha conveniente conversar com o patrão: – Meu padrinho? – Hum? – faz Antônio que conserta uma tarrafa estragada por piranhas. – Zé, diz preocupado: – Só de ontem pra huje a praga da água tufou um parmo bem esticado. Nós vamo perder um bom bucado dessa juta, pois parece que só dá pra esperar até o fim do mês. – É, eu quase já não durmo, maginando bestera – confessa Antônio, sem interromper o manejo da agulha. Inda farta nós ajeitar a maromba dos boi, que percisa de cunserto. O diabo é que a gente não pode se meter nas duas faxina só duma porrada.

Maria Flor, que escuta o diálogo entre o afilhado e o o marido, intervém, animada: – Bobage, homem! Toca pra frente que eu e os curumim ajudamo vocês. E vumbora, que o tempo ruim chegou de com furça!

A partir desse dia, já enfrentando as pesadas e constantes chuvas do inverno regional, praticamente só a criança de dois anos fica dispensada de trabalhar como jumento de carroça. Todos fazem o que é possível, somando suores e palavrões para não sucumbirem aos novos – embora repetidos anualmente – desafios de sua cruel situação de inquilinos (ou invasores?) do zangado rio barrento. A várzea inteira atira-se a um nervoso e massacrante combate contra o calendário.

Depois de fazerem os reparos mais urgentes na maromba – o rústico jirau onde o gado passa a maior parte da enchente – as atenções todas voltam-se para a juta. Chegou-se ao início de fevereiro e não há mais condições de esperar sequer uma semana: já é preciso cortar as plantas com água pela cintura.

Colheita de juta... Uma das mais duras tarefas impostas a um filho de Deus neste mundo em que todos, ofegando sob o peso da maldição bíblica, devemos ganhar o pão de cada dia com o suor do próprio rosto. Homens, mulheres e crianças – sem exceção para as madames gestantes – armados de foices afiadas, passam dias inteiros, semanas seguidas dentro do rio, ceifando os arbustos pela raiz. Além de, muitas vezes, precisarem mergulhar para fazê-lo, inúmeros são os riscos a que se expõem. Além dos resfriados e pneumonias, arraias no fundo tabatinguento, poraquês eletrificados, cobras, jacarés e sanguessugas compõem um horrorizante exército de inimigos invisíveis, dispostos a atacar quando menos se espera.

Nesta friorenta manhã, embora esteja chovendo fortemente, a família moureja no jutal, pois boa parte da produção prevista já se perdeu. A água cresce, cresce e não se tem o direito de desperdiçar nem uma hora de trabalho. De repente, o berro de Bibito, o segundo filho, esperto moleque de onze anos: – Aaaiii!... Uma coisa me mordeu, papai! Aaaiii!...

Rápido, Antônio carrega o menino, pondo-o num banco da canoa grande onde se vai jogando a juta cortada. Olhando a feia ferida, que sangra muito, Zé Potoca sentencia, de olhos arregalados e examinando a dentada na perna direita: – Trairambóia!... E pegou de jeito. – Pelo aspecto, parece ter sido mesmo a peçonhenta serpente aquática, que mata a rês nos pastos alagados, decepando-lhe a língua num instante. Rasgando um pedaço da própria saia ensopada, Maria Flor ordena, afobando-se ante os gritos da vítima: – Vumbora! Larga a pira dessa juta aí e vamo pra casa que o filhinho percisa de muito cuidado!

O garoto vai apresentando os sintomas iniciais do progresso do veneno em seu sistema circulatório, além de perder muito sangue. Experimentam-se remédios caseiros, mas como o paciente piora de momento a momento, o pai resolve: – Zé, tu fica aqui com os outro curumim, que eu vou pra cidade mais o Bibito e a Maria. Eu tô descunfiando que foi outra mardição mais pior que trairambóia que mordeu ele. Perpara o barco depressa.

Em questão de vinte minutos, sob a chuva que diminui de intensidade, o “Flô das onda II” zarpa no rumo de Santarém e a viagem se atrasa bastante devido ao mau tempo. O vento de cima forma ondas irregulares que, fazendo a embarcação balançar para os lados, vão ensopando o choroso e febril enfermo. A mãe procura protegê-lo da melhor maneira possível com um plástico que esvoaça a todo instante, revelando-se um agasalho quase inútil. Por tudo isso, quando conseguem chegar ao porto do Mercado Municipal, o menino, já tendo perdido muito sangue, está quase inconsciente e inchando, da perna para cima.

- Trairambóia mata, mas não acaba com um cristão assim tão depressa! – diz Maria Flor, chorando e comprimindo o filho de encontro ao peito. Minha Nossa Senhora da Conceição, sarve o meu Bibito!

Deixando o barco sob a vigilância do dono de uma baiúca próxima, o casal, às carreiras, mete-se num táxi e rápido para o hospital da “Fundação SESP”. Ao desembarcarem os dois, carregando o doente com muito jeito para não lhe agravar os padecimentos, aparece uma enfermeira que, lá da porta, pergunta, saboreando um cafezinho: – É do INPS? – Não, senhora – responde Antônio, respeitosamente, com o chapéu de carnaúba encostado ao ventre, enquanto a criança geme, baixinho, no banco de pedra onde foi colocada. – É do FUNRURAL, por acaso? – indaga novamente a mulher, aproximando-se do garoto. – Não, dona menina, é da “Fazenda Apuizeiro”! – grita Maria Flor. O bichinho tá mordido de cobra, quase morrendo! Chame logo o dotô, pelo amur de Deus! – Tenha modos, senhora! – ralha a pernóstica funcionária, no momento em que surge um padre, habituado a visitar diariamente os enfermos. A atendente completa o sermão: – Saiba que se o seu esposo não está vinculado ao INPS ou ao FUNRURAL, únicas instituições com as quais mantemos convênio, trata-se de um caso específico de internamento em clínica particular.

Contudo, antes de a zelosa burocrata encerrar o caridoso discurso, Bibito estremece violentamente e expira sobre o bloco de marmorite! O sacerdote faz o que lhe compete e Maria Flor, vendo o filhinho morto, descontrola-se: insultando a mãe ausente da assustada enfermeira, aplica duas sonoras bofetadas na cara da moça que, afinal, deve ter cumprido superiores diretrizes de serviço.

Estabelecido o tumulto, correm algumas pessoas para o local, inclusive o guarda que vigia a entrada do hospital. Conseguindo conter, no ar, o terceiro tapa da esposa, Antônio Presidente, enxugando os olhos vermelhos, limita-se a dizer: – Vamo simbora. Deus quis assim. Descurpe as parmada, dona menina, mas a senhora foi muito braba com a gente. Nós viemo da varja, mas nós somo gente também. Cachurro é que morre desse jeito!

Talvez só isto de bom acontece neste trágico dia: embora agredida e chorando em silêncio, a funcionária reconhece que a dor daqueles pobres matutos é bem mais devastadora que os dois merecidos bofetões acertados em seu rosto. Por isso, pede ao soldado que deixe sair em paz a espoletada Maria Flor.

Após alguma hesitação sobre as providências a serem tomadas, os desolados pais resolvem conduzir o cadáver para a residência do amigo Babá Sapateiro, abandonando a idéia inicial de levá-lo para ser sepultado em Paricatuba, comunidade bem próxima à “Fazenda Apuizeiro”. Com a ajuda de um vereador que às vezes aparece lá na fazenda, em campanha política, no dia seguinte, cedo, eles enterram o garoto no cemitério de Santarém.

Às oito horas da chuvosa manhã, os tristonhos caboclos retornam às amenidades do lar, doce lar. Na tarde do mesmo dia já estão cortando juta outra vez, pois o rio cresceu mais quatro dedos. No entanto, a conselho de amigos, trouxeram da cidade o milagroso “Específico Pessoa”, infalível contra picada de cobra, ainda que seja surucucu-de-fogo, cascavel, coral ou jararaca. Só que ninguém soube dizer se serve também para anular veneno de trairambóia. Quem duvida, no entanto, que não aparecerá uma oportunidade para se tirar a dúvida?

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