sexta-feira, 11 de abril de 2014

Maromba - de Emir Bemerguy - Capítulo 6


- O BOTO -
De vez em quando, conforme a fecundidade das vacas que existem nos seus rebanhos, os criadores da várzea fazem a “ferra” dos novos bezerros. Esses instantes sempre funcionam como pingos de alegria no miúdo mundo particular de cada caboclo, pois, em geral, pelo menos duas coisas essenciais os participantes da cruel carimbagem encontram com fartura: comida e cachaça. Isto, porém, se o patrão for generoso, porque se sabe de alguns tão sovinas que não admitem qualquer festejo para assinalar os mamotes com suas iniciais, gravadas a fogo na anca ou na cara do animal.

Antônio Presidente chega em casa e participa à família: – O compadre Sabá Caraxué me convidou pra gente fazer a ferra de parcerada. Como nós temo pouco bezerro, a gente junta com os dele, no domingo que vem, lá na “Fazenda Jatuarana”. Ele dá um carneiro gordo e nós entramo com um bode capado pra bóia. – E a birita? – quer saber Zé Potoca, enquanto a meninada comemora ruidosamente a maravilhosa notícia. – Ele já tem muita cachaça lá – tranqüiliza-o Antônio. – Maria Flor faz uma sugestão: – Como fica no caminho, nós pára um bocadinho na fazenda do Miro Brito. Eu quero dar uma espiada nuns frango que ele trouxe da cidade. – Depois é debatido o problema da permanência de alguém para vigiar a casa enquanto eles estiverem fora. Combina-se pedir ao vizinho Lulu Pinduri que se incumba dessa tarefa.

As coisas transcorreram dentro dos planos e, no domingo, a turma da “Fazenda Apuizeiro” está outra vez antegozando, rio abaixo, os prazeres de uma gostosa manhã. Os dez bezerros foram enviados de véspera, no barco grande do compadre Sabá. Está ocorrendo, hoje, a gloriosa estréia da nova embarcação da família – o garboso “Flô das onda II” – que substituiu o primeiro, tragado pelo funil da miserável “terra caída”, e desfalcou o plantel em três reses – o preço da transação do novo barco.

Na propriedade do amigo, um pouco mais abastado que Presidente, estão reunidos, às nove horas, seis vaqueiros tagarelas, senhoras e um magote de meninos com idades variadas e iguais diabruras.

A ferra é algo relativamente simples... para quem apenas aprecia o bárbaro ritual. Derruba-se o mamote que, imobilizado no chão, recebe em um dos quartos traseiros, ou no meio da testa, o ferro incandescente! Louca de dor, a rês muge e baba, um cheiro de carne sabrecada passeia pelo ar e, com um vigoroso tapa na anca, o carrasco liberta o animal, que dispara, aos pinotes. O gesto repete-se até à última vítima.

Quando se encerra a principal tarefa, outra, bem mais interessante, se inicia: o preparo do moquém para o churrasco. As mulheres ajudam de várias maneiras, temperando a carne, conferindo a dosagem dos molhos, vendo o que falta aqui e ali. Ao mesmo tempo, experimentados ribeirinhos incumbem-se de reunir lenha boa para se ter um braseiro de respeito, em condições de assar os gordos e tentadores pedaços de carne que rolarão lentamente, a chiar nos espetos, até ficarem no ponto desejado – macios, cheirosos, irresistíveis...

Como agora há gente de sobra para essa atividade final, alguns caboclos preferem o refúgio sombreado de uma árvore de castanha sapucaia, onde várias garrafas de batida de limão já se dispõem, convidativas, sobre um banco de tábua comprida. Zé Potoca, esperto, arruma-se aí, logo chegando também Mané Carrapato, Totonho Fura Bolo e Juca Potó. Tomam a dose inicial de cachaça – a bendita abrideira – e, puxando conversa, indaga Juca: – Mas vocês suberam do causo do buto lá de Óbidos? – Não vi falar, não – responde Mané. – Os outros dois alegam a mesma ignorância. Contudo, porque se trata de uma das presenças mais familiares e folclóricas no misterioso rio alaranjado, o lendário boto é um personagem que sempre se olha com supersticioso respeito na Amazônia. Constitui um assunto de interesse permanente em rodas de conversa. É por isso que Potoca, acabando de engolir o segundo trago do queimante aperitivo, pede ao amigo que esmiuce a ocorrência: – Sapeca aí, Juca, que a gente gostamo desses causo! – Eu até nem sei muita coisa, não – confessa o outro. Já foi o Furgenço Guariba que me contou. Dizque um regatão tava parado lá no porto de Óbidos quando o dono viu um macho vestido de roupa branca. O sem-vergonha ia saindo do barco e levava uns bagulho roubado. O homem tocou o pau-de-fugu em cima do cabra e o ladrão caiu, mortinho. Quando chegaram perto dele pra ulhar, um pitiú dos diabo empestava o ar e todos correram de medo: o defunto era um pai-d’égua dum buto tucuxi! – Sério, sentencia Totonho: – Os cuirão desses buto só véve aporrinhando a vida dos desinfeliz. Vai ver que tem mulher no causo. Eu sei muita arrumação de buto, mas só quero contar uma. – Então, manda logo a tua, que eu tenho um causo insquisito pra dispôs – apressa-o Zé Potoca.

E Fura Bolo começa: – A Vivina, filha do cumpadre Junito Perneta, era danada de bunita. Um dia a cabuca tava esfregando uma peça de roupa na beira do Amazona quando deu com um homem sentado na ilharga dela, num tronco de pau. – Acende um cigarro e continua: – Ela se espantou, mas não pensou em mardade. Pois o capeta veio tomando chegança e aí passou uma cantada de dotô na menina, que ficou logo duidinha por ele. Dispôs de fazer sem-vergonhice com a cunhã, o cão mergulhou e sumiu. – Ela ficou buchuda? – pergunta, curioso, Carrapato. – Peraí que eu te conto já – promete Totonho. A muça, meio pateta, ficou percurando o namurado fujão e quando o vento ventou numas aningueira, ela viu um baita buto buiar bem pertinho. O bicho sortou uma gorfada de água quase na cara da cabuca. Aí deu um assuvio fininho e vortou de vorta pro fundo, espalhando um pitiú disconforme de fedurento. Era o cachurro garanhão que tinha desgraçado a Vivina! – E dispôs, o que aconteceu? – quer saber, interessadíssimo, Juca Potó.

Após longa tragada, Fura Bolo fornece o desfecho: – A muça ficou toda abestalhada e nove mês mais tarde pariu um curumim que era iguarzinho um boto e mais pitiú que piracema de apapá! O muleque morreu logo e a mãe no outro dia. Vute!

Zé Potoca, a essa altura com as baterias em plena carga, sem perda de tempo assume o comando e ataca: – Agora vocês vão ouvir um causo que eu juro que aconteceu lá na cidade. Minha mãe conhecia o homem dessa história.

Chega Sabá Caraxué. Quando os vaqueiros lhe oferecem um dos quatro tamboretes para sentar, ele o rejeita, gentil: – Tejam em casa. Não se vexem comigo. Tão falando de buto? – É, seu Sabá – confirma o afilhado de Presidente, tomando outra lapada. Escute aí que o meu causo é muito legar.

Acomoda-se o dono da fazenda numa raiz da sapucaieira, enquanto o crioulo vai em frente: – Apareceu em Santarém um cabuco desses lá do Brasir, que chega nos navio do Lóide. Dizque era namurador como o cão e ouviu dizer que ulho de buto é muito pai-d’égua pra arrumar mulher. – Isso eu garanto – proclama Carrapato. O ulho é bom, mas eu inda acho o vergalho dele mais melhor. Nos meus tempo de rapaz sorteiro, eu andava com eles nos borso da carça e fazia miséria com a mulherada, seus menino! Eu nem gosto de me alembrar, que me dá vontade de chorar. – Mas deixa eu acabar, pitomba! – exclama Potoca, impaciente. O cuirão do macho mulherengo percurou arguém que vendia ulho de buto e comprou um, nuvinho em folha. Enfiou a praga no borso da carça, mas as coisa começaram a ficar insquisita pras banda dele. – Por que? – indaga Caraxué, sorrindo. Ele teve encrenca com marido de mulher casada? – Que nada! Diz Potoca. Era até mais melhor que fosse isso. O garanhão deu foi pra falar fino, piscar pra homem e andar rebolando a bunda, feito fêmea! E só bigududo se engraçava dele! – Na cidade tem muita judiação – filosofa Totonha. Eu tô mardando que fizeram argum feitiço pro desinfeliz. –Tu quer adivinhar, mas tu não acertou! – zomba, vitorioso, o imaginativo narrador. Dispôs de sufrer o diabo, o bunitão acabou descobrindo o que tinham vendido pra ele era ulho de buta!... O cabuco, avacalhado, sumiu da cidade e nem cachurro de faro fino sabia onde ele se enfiou.

Gargalhadas estouram, sobretudo porque o crioulo sai andando a balançar as nádegas e a falar fino, como o herói da história. Mané Carrapato, meio bêbado, rola no chão, rindo, e Zé Potoca se baba de gozo com o triunfo quando Presidente os convoca: – Ei, seus cuirão! Vumbora que a bóia tá pronta, tinindo! – E lá se vão todos, ainda se contorcendo de rir. Agora, em volta do moquém, se empenharão numa valente disputa de apetites. A carne suculenta e aromática, a farinha torrada, a jiquitaia especial e o limãozinho com cachaça à vontade farão milagres. Vão atirar efêmeros, mas merecidos dulçores sobre essas vidas intragavelmente amargas durante a maior parte do ano.

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